Como é sabido na
actualidade existe uma crise profunda da fé. Abala o cristianismo, e é
profunda, pois afecta toda a existência humana. A crise actual do homem é toda
ela uma crise em profundidade, e só em profundidade se pode solucionar: a crise da fé. A descrença situa-se
sobretudo nos países do chamado Primeiro Mundo, especificamente a Europa, que é
considerada como “Irmã mais velha na fé”, na expressão de João Paulo II e
“impulsionadora” do cristianismo. No âmbito da fé religiosa, verifica-se uma
diminuição dos crentes e um aumento
dos descrentes. No interior do
cristianismo assiste-se assim, com frequência, a uma igreja de «atonia», sem
grande vitalidade nem criatividade e sobretudo sem credibilidade nem
atractividade[1].
Senhor, eu creio mas aumenta a minha fé! É um pedido feito pelos Apóstolos a
Jesus Cristo, que é Porta fidei (Porta
da Fé). Será que o homem pós-moderno ainda é fiel à fé que professou no
baptismo? Ou será que o homem contemporâneo ainda tem necessidade de ir buscar
Algo ou Alguém como fundamento último em que possa acreditar, e
simultaneamente, dele esperar a salvação? Ou será que o homem de hoje se deixa
conduzir pela conduta de irreligiosidade,
isto é, a ausência de Deus nas práticas religiosas? Na actualidade do mundo
ocidental verifica-se um «eclipse de Deus» (M. Buber). O cardeal Ratzinger
começava o seu famoso livro Introdução ao
Cristianismo dizendo, que o problema dos cristãos era não saberem o
conteúdo e o significado da fé cristã. Dentro do catolicismo encontram-se
cristãos sem Igreja, cristãos em autogestão, religião em arranjo pessoal ou de
composição à lista “religiosidade flutuante” (na realidade dos timorenses temos
a conotação: Cristão KTP ou NaPas), e bricolage
religiosos, na linguagem de François Champion[2].
Naturalmente, o homem aparece no mundo como “animal religiosus”. O homem vê-se no
mundo como um caminhante, sente necessidade de saber de onde vem e para onde
vai. E, em ligação com isso, sente necessidade de saber o que está no fundo do
mistério que envolve o mundo e a vida, afirmando a existência de Algo ou Alguém
que, em última instância, dê sentido a todas as coisas[3].
Talvez como diria Daniel Innerarity: «o Problema não é se as pessoas
continuarão ou não a crer em Deus, mas sim qual é o lugar dessa crença no mundo
social. O que acabou não foi a religião: foi a organização religiosa da
sociedade. Desvaneceu-se aquilo que sustentava a fé religiosa a partir do
exterior, aquilo que a inseria no círculo do plausível e lhe dava uma espécie
de objectividade sociológica. Estamos a entrar na época de uma religião
libertada das suas conotações políticas e sociais, mais livre e mais pessoal.
Talvez agora se possa conceber a experiência e a prática religiosas de outra
maneira, mais concorde com a realidade democrática e até com a natureza da
religião». A religião não se reduz a um credo: repercute-se em toda vida.
Orienta e dá sentido a toda a existência humana.
Ao celebrarmos os Cinquentenário da abertura do Concílio
Vaticano II e o Vigésimo aniversário da publicação do Catecismo da Igreja Católica, sua Santidade Bento XVI proclama este
como Ano da Fé. Recorda também o
sínodo dos bispos sobre a Nova Evangelização, sob o tema: a Nova Evangelização para a transmissão da fé cristã; e o ano da fé
de 1967 proclamado por Paulo VI. Neste ano da fé somos conduzidos pela Carta
Apostólica Porta Fidei a redescobrir
a beleza da fé que professamos no baptismo. É um autêntico itinerário de fé. Portanto,
esta carta resume-se nesta tríplice dimensão da fé.
1. Assimilar os conteúdos da fé
A palavra fé vem de “fides”, confiança e fidelidade. A fé
leva a algo fora de nós mesmo: alteridade, relação com o outro, fora de si
mesmo. Em hebraico, a fé sublinha mais a firmeza; crer significa estar firme,
seguro (aman), confiar (batah), refugiar-se (hasad). Em grego, vinca-se mais a
persuasão; crer é obedecer (hypakouein),
edificar (oikodomein), além de
conceito mais generalizado que é confiar (pisteuein)[4]. A
fé não é saber teórico. A fé, é antes de tudo, a atitude de uma pessoa que
decide confiar no Outro, apesar de tudo e opondo-se a tudo, até pôr em jogo,
neste compromisso, o próprio sentido da sua existência[5]. O
Santo Padre lembra-nos que a Porta Fidei:
« introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja,
está sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a Palavra de
Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma.
Atravessar esta porta implica embrenhar-se num caminho que dura a vida inteira[6]». A
fé é adesão a Cristo e implica conversão: “abraçaram a fé e se converteram ao
Senhor” (Act 11, 21). O “homem peregrino”, o cristão vive no mundo amparado
pela fé, e tem por meta a transcendente. Escreve Bento XVI: «o ano da fé
convida-nos a uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do
mundo. No mistério da sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor
que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos
pecados [7]».
Pela fé, o crente
torna-se participante da relação dialógica de Jesus com o Pai; e como Ele vive
não a partir de si mesmo, mas do outro de si (isto é, do Pai que lhe é origem)
também o cristão não fundamenta sua existência em si mesmo, mas na pessoa de
Jesus Cristo[8], revelação plena do Pai. A meta da
revelação é conduzir à obediência da fé e centrar tudo em Cristo, e para que
nos entreguemos ao louvor da sua glória que é a salvação do homem.
O acesso ao mistério dá-se pela fé que reconhece o plano
de salvação na morte e ressurreição de Cristo. O mistério é apresentado aos
homens conscientes da exigência e abertos ao dom. Mas esta fé não se dá só pela
palavra exterior, é necessária a iluminação interior ou a graça de Deus. O
verdadeiro significado da fé - diria Tomás Merton – é a rejeição de tudo o que
não é de Cristo, de modo a que toda a vida, toda a verdade, toda a esperança e
toda a realidade possa ser vista e encontrada em Cristo. A fé não é a penas uma
reacção subjectiva e psicológica mas um poder dinâmico e sobrenatural que molda
toda a existência da vida humana[9]. A
fé em Deus não pode deixar de influenciar as actividades humanas. Segundo a Porta Fidei: «na medida da sua livre
disponibilidade, os pensamentos e os afectos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e
transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta
vida. A fé, que actua pelo amor torna-se um critério novo de
entendimento e de acção, que muda toda a vida da criatura humana[10]. Esta
fé é a experiência de ser amado por Jesus Cristo de modo completamente pessoal.
Sem dúvida O quarto Evangelho foi que melhor pôs em
realce esta dimensão específica pessoal do conhecimento da fé; conhecer-te a Ti, único Deus verdadeiro e ao
teu enviado Jesus Cristo (cf. Jo. 17, 3). É esta a dimensão eterna da vida.
A fé como acto implica estar no mundo, sujeito às leis do agir com os outros e
como acto de fé transcender esta existência assumindo-a noutra interpretação da
realidade: mundo de Deus face à lógica dos homens (J. F. Malherbe). A fé vive
dum “movimento essencial de transgressão, dum excesso”, que se inscreve ao
mesmo tempo no mais profundo do mundo, do corpo e da pessoa (Pierre Gisel), um fora-de-lei
cultural, “um trabalho a descoberto (a
fazer) sem a protecção da ideologia da instituição sob a forma de digressão
(forme voyageuse)” (Michel de Certeau); como “peregrinos que num êxodo sempre
novo procuram a pátria eterna da Verdade” (K. Rahner). Crer é um modo de ser
onde a compreensão da fé é inseparável da compreensão de si” (J. Geffré): fé e
a compreensão (de si) se implicam mutuamente[11],
na existência numa convergência entre o dinamismo próprio da fé (fides quaerens intellectum) e as
operações da inteligência (intellectus
quaerens fidem (G. P. Widmer). O “intellectus
fidei”, que pode ser assimilado a um “compreender hermenêutico”, assume o
pensar numa correlação entre as exigências da problemática racional e as
exigências da reflexão cristã (J. Ladriere). Crer é atitude do homem colocado
perante a questão do sentido, da verdade, como peregrinação permanente no
mundo. Crer é confiar em Alguém, é seguir o chamamento do Desconhecido que
convida, confiar a própria vida nas mãos de um outro, para que ele seja o
único, verdadeiro e santo (Bruno Forte). Pela fé o homem responde a um Deus Ludens
no ritmo de dar, receber, voltar a dar, como notou bem na expressão de Hugo
Rahner: “Se o homem é um homo ludens que
transfigura o mundo, é porque Deus é um Deus
ludens que possibilita o mundo”; por isso, “Porque Deus é um Deus ludens, deve o homem ser um homo ludens”. Nesta dinâmica a fé faz o
homem esperar de Deus que torna possível tudo o que crê. E crer é ter confiança
no poder de Deus, é deixa-lo agir, deixa-lo ser Deus.
O “estar no mundo”, mesmo na fé cristã, tem no pensar o
ponto de apoio (M. Heiddeger). E neste estar da fé no mundo, o Espírito “introduz
na dimensão própria do espaço de Deus (que) ele é (competindo à teologia) conservar a memória viva do prazer de
pensar e de viver que convida a habitar o espaço potencial de Deus”, a
compreender em referência a uma ontologia do jogo (J. Greish), da ressonância.
Diria Santo Anselmo: credo ut intelligam
(creio para compreender) é uma afirmação muito mais cristã e humana, do que a afirmação
de Tertuliano: credo quia impossible,
(creio, nisto porque é impossível). Não só a fé vai muito mais além, como este
mais além não é qualquer verdade teórica referida ao absoluto; não é outra
coisa senão o Outro em Pessoa. Foi o que Tomás de Aquino indicou perfeitamente
numa fórmula célebre, ao dizer da fé que ela
não pára nos enunciados, mas só na própria realidade, isto é, naquele que João nomeia, não como a Verdade, mas o Verdadeiro[12].
Ser cristão não é uma questão de teorias ou de leis. Quem nos salva é a pessoa
viva de Cristo acolhido como Filho de Deus e Salvador nosso. É na relação
pessoal, viva, dinâmica com Jesus Cristo que se aprofunda o conhecimento íntimo
que constitui a nossa fé: «se não nos enamorarmos de Cristo, não teremos
interesse algum como Cristãos» (J. Ratzinger)
O Concílio Vaticano II diz explicitamente: O homem
entrega-se todo a Deus livremente, prestando o ‘pleno assentimento da
inteligência e da vontade a Deus que revela’ (DV 5). O desejo de Bento XVI é
convidar todos os cristãos a professar a fé na trindade e deixa-nos plasmar
pela graça transformadora de Deus. Bem o exprime Bento XVI: «Professar a fé na Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo –
equivale a crer num só Deus que é Amor: o Pai, que na plenitude dos tempos
enviou seu Filho para a nossa salvação; Jesus Cristo, que redimiu o mundo no
mistério da sua morte e ressurreição; o Espírito Santo, que guia a Igreja
através dos séculos enquanto aguarda o regresso glorioso do Senhor[13]».
2. Celebrar a fé
Celebrar a fé é um momento
fundamental na vida de um cristão. A construção de uma fé madura faz-se também
dificuldades, sofrimentos e opções de fundo que exigem uma conversão profunda
da mente e do coração. O caminho da maturidade implica a busca de uma educação
para viver a fé cristã na sua totalidade una e indivisível, como fé professada,
celebrada e vivida. Cristo torna-se o centro de toda a celebração da fé. É
nesta referência a Jesus que se constitui a minha fé, porque é nela que Deus
vem ao homem, que o homem encontra Deus. É o lugar do encontro, é o próprio
encontro, é a mediação, é o mediador; depois
de ter falado a nossos pais pelos profetas Deus falou por seu Filho (cf.
Heb 1, 1). Esta mediação é integralmente humana; implica três consequências: 1.
Só, através de Jesus, se estabelece a relação de fé com o Outro; 2. Segue-se
que a adesão de fé se inscreve não no quadro de um saber teórico, mas de um
reconhecimento no seio de uma relação interpessoal; 3. Jesus não escapa à
condição humana, Deus encontra-nos nele sob um modo humano; isto é, limitado,
finito[14].
É por isso que a resposta da fé, dada pelo homem a Deus, deve ser voluntária.
Por conseguinte, ninguém deve se constrangido a abraçar a fé contra vontade.
Efectivamente, por própria natureza, o acto de fé tem característica de
voluntário[15].
Por isso, o homem deverá alimentar e revigorar a fé, procurar viver melhor a
relação pessoal com Deus e conduzir a experiência da beleza da fé, à comunhão
fraterna, ao compromisso maduro da vida cristã na Igreja e no mundo.
Celebrar a fé envolve a totalidade do nosso ser. Ora, a
fé não se reduz a um conjunto de ideias sobre Jesus Cristo; enquanto relação
que é, exige o envolvimento de todas as nossas capacidades comunicativas. Esta
comunicação com Deus através da fé, é certamente fundamental: «sem a fé é
impossível agradar-lhe; e quem se aproxima de Deus tem de acreditar que Ele
existe e recompensa aqueles que o procuram» (cf. Heb 11, 6). Nesta certeza de que
Ele nos recompensa e agrada, Bento XVI exorta aos cristãos para que este Ano seja
uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé
na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é «a meta para a qual se
encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força[16]».
Nesta celebração da fé Deus interpela o homem, comunica a Boa Nova da salvação
e dá-se o encontro entre Deus e o homem pela fé. Há uma relação de amizade de
comunhão. Mas, este encontro na fé tem particularidades: é sempre Deus que tem
a iniciativa; há que ter em conta a gravidade da opção da fé; a profundidade da
comunhão entre Deus e o homem é a característica deste encontro. Como notou com muita lucidez
Bento XVI: «a necessidade de
redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a
alegria e o renovado entusiasmo do encontro com Cristo[17]».
A fé verdadeira está centrada na relação pessoal com Cristo. Eis a
originalidade da fé cristã: ela encontra e exprime a sua originalidade na
relação com Jesus Cristo. Ele é o “coração” da própria fé, “o autor e
aperfeiçoador da nossa fé”. É o fundamento seguro, o conteúdo essencial e a
meta viva e pessoal do acto da fé. Esta fé dá-nos uma profunda confiança e uma
imensa alegria da vida.
Pela fé, reconhecemos na acção
divina por Jesus Cristo a revelação do sentido último da nossa existência,
reconhecemos que o que se passou nele também diz respeito ao nosso destino de
homens. Como afirma Bento XVI: «o homem contemporâneo pode sentir de novo a
necessidade de ir como a samaritana ao poço, para ouvir Jesus que convida a
crer n’Ele e a beber na sua fonte, donde jorra água viva[18]».
O encontro com Cristo como pessoa viva que sacia a sede do coração humano. Tal
perspectiva remete para Duns Escoto, que definiu o homem como caminheiro em
busca da fonte onde possa saciar a sede dos desejos mais profundo. No ser
humano os desejos radicam na vontade e na razão, impelindo-o a buscar até que
encontre o que busca. Mas o apetite humano só poderá ser satisfeito pelo bem
infinito (Ord. III, d. 26, q. un., n. 22). Só com os olhos postos em Cristo, o
cristão aprende a reconhecer a presença e a acção de Deus que o busca, que vem
ao seu encontro e o chama a nova comunhão. Jesus Cristo é o tesouro único que a
Igreja tem para nos oferecer.
O homem, com a fé, volta-se para Deus e se dá a ele na
amizade. Pela fé, Cristo torna-se o “poder de Deus” nas nossas vidas. Só pela
fé podemos aceitar verdadeiramente Cristo e a sua Igreja como nossa salvação.
Sem fé, é-se cristão apenas de nome[19]. A
autêntica fé cristã é ao mesmo tempo dom e consentimento, com o seu peculiar
estilo de vida, diz Bento XVI na Porta
Fidei: «a fé cresce quando é vivida como
experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria.
A fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite
oferecer um testemunho que é capaz de gerar: de facto, abre o coração e a mente
dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a aderir à sua Palavra a fim de
se tornarem seus discípulos»[20]. Esta experiência extraordinário da fé, que molda
toda a existência humana: «vivo a vida presente na fé do Filho de Deus que me
amou e se entregou por mim» (Gal. 2:20). É esta experiência de ter sido “enamorado” por Cristo, que dá impulso à
nossa vida.
A experiencia da fé torna-se, neste momento, uma
experiencia do contacto, da relação pessoal do homem com Deus, que se manifesta
como amor. O encontro com Cristo torna-se um paradigma do caminho espiritual do
cristão, um itinerário de conversão, de fé e de amor a Cristo, que começa pela
experiência pessoal do encontro. A experiência do encontro marca um início que
precisa de ser continuado, é um desabrochar que requer crescimento até à
maturidade.
A fé faz com que saboreemos, como
que de antemão, a alegria e a luz da visão beatífica, termo da nossa caminhada
nesta Terra. Então, veremos Deus “face a face”, tal como Ele é. A fé, portanto,
é já o princípio da vida eterna[21].
Como tinha dito S. Basílio no Tratado do
Espírito Santo: «desde já, contemplamos as bênçãos da fé, como reflexo num
espelho, é como se possuíssemos já as maravilhas que a nossa fé nos garante
havermos de gozar um dia». Que suscite
em nós uma fé inquebrantável segundo o desejo de Santo Padre: «fazendo
com que o “Ano da Fé” produzisse o máximo de frutos, quer por uma adesão mais
profunda à Palavra de Deus, quer pela renovação da profissão de fé em muitas
comunidades, quer pela confirmação da própria fé, com o testemunho de uma vida
autenticamente cristã[22]».
É certo que todos os dias nas celebrações litúrgicas, podemos e devemos dispor
um tempo para Deus, cultivando a fé para imbuir dela a nossa vida. Pois, só
através da celebração da fé que nos faça permaneceremos no coração da fé.
3. Testemunhar a fé
A fé é resposta do homem ao testemunho dos apóstolos. A
pregação do mistério revelado convida à "obediência da fé" (Rm 16,26;
2 Cor 10,5). A revelação é uma função ou decisão específica: é testemunho, que
pede reacção específica: a fé. Toda a revelação é testemunho. O testemunho da
fé é o critério definitivo pelo qual o homem é considerado um cristão.
Testemunhar é afirmar a realidade de um facto e implica dois aspectos:
comunicação de acontecimentos de que se tem conhecimento por experiência e
comunicação feita em função de uma pessoa. A fé é, portanto, este processo,
este movimento (conversão) para Jesus e, nele para o Pai. Recorda-nos Bento
XVI: «Queremos celebrar este Ano de forma digna e fecunda. Deverá
intensificar-se a reflexão sobre a fé, para ajudar todos os crentes em Cristo a
tornarem mais conscientes e revigorarem a sua adesão ao Evangelho, sobretudo
num momento de profunda mudança como este que a humanidade está a viver[23]».
No testemunho humano, o testemunho é um apelo que convida o outro a admitir
como verdadeiro com base numa palavra, ou seja, a fé, como resposta, apoia-se
no testemunho, como garantia próxima da verdade. Esta fé é uma aceitação total
e inabalável da pessoa de Cristo como fonte de poder salvífico e de vida nova. É
o “mistério” e projecto salvador de Deus; é a vontade que Deus tem de partilhar
a sua vida, a abundância da sua riqueza com a humanidade e com cada ser humano.
A fé é resposta relativa à pregação de Jesus sobre o
Reino; “O Reino de Deus está próximo; convertei-vos e acreditai...” (cf. Mc 1,
15); “pregai... quem acreditar.... será salvo...” (Mc 16, 15-16). A fé responde ao testemunho exterior do filho
e à atracção interior do pai e testemunha o espírito. Assim, Deus livre através
da economia da encarnação faz conhecer a sua vida íntima e os seus desígnios
eternos de salvar e conduzir todos os homens a si por Cristo. Como bem notou a Porta Fidei: «esperamos que
o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade.
Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada e
reflectir sobre o próprio acto com que se crê, é um compromisso que cada crente
deve assumir[24]».
A fé, se é verdadeira, passa e embebe a vida
toda, compromete o nosso ser e o nosso coração, ilumina a inteligência e
faz-nos pensar como Jesus Cristo. A fé é um acto pessoal: resposta livre
do homem á proposta de Deus que Se revela. Mas não é um acto isolado. Ninguém
acredita só, como ninguém vive só. Ninguém se deu a fé a si mesmo, como ninguém
a si mesmo deu a vida. Foi de outrem que o crente recebeu a fé; a outrem a deve
transmitir[25].
A fé deve preceder a gramática e os
meios do conhecimento. A Palavra que é Cristo ‘habita’ literalmente a psique
humana embora necessite de ser despertada pela graça”[26].
A fé é dom do Pai: “... ninguém pode vir a mim, se isso
não lhe for concedido por meu Pai” (Jo 6, 65). O ser de Jesus identifica-se com
a sua obra, função “para nós”: “A pessoa de Jesus é sua doutrina e sua doutrina é Jesus mesmo. ‘Portanto, fé cristã,
isto é, fé em Jesus como o Cristo, é verdadeiramente “fé pessoal”; não é a
aceitação de um sistema, mas a aceitação de uma pessoa, que é a sua palavra; da
palavra como pessoa e da pessoa como palavra[27]. E
na palavra se revela o sentido da existência humana; Cristo pelas suas palavras
diz “Palavra”, que ele é, o Logos (“a
palavra”, o “sentido”, a “razão”), fundamento do universo e da pessoa[28].
O espírito testemunha e gera a fé (1 Jo 5, 6).
Esta acção interior é o “testemunho do Espírito” (l Cor
5,6), que age interiormente para que o homem reconheça e confesse a verdade de
Cristo. Como sublinha a Porta Fidei: «o professar com a boca indica que a fé implica um
testemunho e um compromisso públicos. O cristão não pode jamais pensar que o
crer seja um facto privado. A fé é decidir estar com o Senhor, para viver com
Ele. E este «estar com Ele» introduz na compreensão das razões pelas quais se
acredita[29]».
É ainda ao Espírito e a seus dons que se deve atribuir o aprofundamento da
revelação (DV 5). No movimento do homem para a fé, é o Espírito que abre a
inteligência ao mundo do evangelho; é ainda o Espírito que, no interior da fé,
desenvolve o poder de penetração da inteligência (dom da, inteligência) e
dispõe a compreender, mediante as vias do amor (dom da sabedoria),
infundindo-lhe uma consonância afectiva que o torna conatural ao evangelho. É
por isso que os evangelhos sinópticos ecoam com as palavras de Jesus Cristo
para aqueles a quem curou: “a tua fé te salvou!”.
A fé é um dom, a pessoa de Jesus é a sua doutrina e a sua
doutrina é Jesus mesmo a fé cristã é a fé em Cristo, fé pessoal, fé numa
pessoa. Como atesta a Porta Fidei: «A
própria profissão da fé é um acto simultaneamente pessoal e comunitário. De
facto, o primeiro sujeito da fé é a Igreja. É na fé da comunidade cristã que
cada um recebe o Baptismo, sinal eficaz da entrada no povo dos crentes para
obter a salvação[30]».
Por sua vez, diz-nos o Catecismo da Igreja
Católica, «“Eu creio”: é a fé da Igreja,
professada pessoalmente por cada crente, principalmente por ocasião do Baptismo.
“Nós cremos”: é a fé da Igreja, confessada pelos bispos reunidos em Concílio
ou, de modo mais geral, pela assembleia litúrgica dos crentes. “Eu creio”: é
também a Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos ensina a
dizer: “Eu creio”, “Nós cremos”[31]. É um caminho de fé que
alimentamos na comunidade Cristã, com a ajuda de outros. Santo Agostinho afirma numa homilia sobre a redditio symboli: «O símbolo do
santo mistério, que recebestes todos juntos e que hoje proferistes um a um,
reúne as palavras sobre as quais está edificada com solidez a fé da Igreja,
nossa Mãe, apoiada no alicerce seguro que é Cristo Senhor. E vós recebeste-lo e
proferiste-lo, mas deveis tê-lo sempre presente na mente e no coração, deveis
repeti-lo nos vossos leitos, pensar nele nas praças e não o esquecer durante as
refeições; e, mesmo quando o corpo dorme, o vosso coração continue de vigília
por ele (Sermão 215, 1).
Pela estrutura da
fé, os outros, que faltam, são “como os sinais da presença de Deus”, e a
“ausência (dos outros) é um momento da verdade”, que “revela a diferença dos outros e de Deus” ou a pobreza que “significa, quer o desejo
que... liga aos outros quer a diferença que...separa deles. Por isso, o acesso à verdade de ser ele mesmo, que se dá na comunhão de “não sem os outros”, é “a
coragem de ser diferente tornando-se, por isso mesmo, seu devedor”, pois, o que sou de mais verdadeiro está
entre nós, ao mesmo tempo, abertura e fenda, ela arranca-nos
uma irredutível, exigente e modesta confissão de fé: “Sem ti, não posso mais
viver. Não te possuo mas a tenho-me a ti. Tu me permaneces outro e tu és-me
necessário, porque que o que de mais verdadeiro sou está entre nós” (Michel Certeau).
Pela fé: Maria acolheu a palavra do Anjo e acreditou no
anúncio de que seria Mãe de Deus na obediência da sua dedicação. Os Apóstolos
deixaram tudo para seguir o Mestre. Acreditaram nas palavras com que Ele
anunciava o Reino de Deus presente e realizado na sua Pessoa. Os discípulos
formaram a primeira comunidade reunida à volta do ensino dos Apóstolos, na
oração, na celebração da Eucaristia, pondo em comum aquilo que possuíam para
acudir às necessidades dos irmãos. Os mártires deram a sua vida para
testemunhar a verdade do Evangelho que os transformara, tornando-os capazes de
chegar até ao dom maior do amor com o perdão dos seus próprios perseguidores.
Homens e mulheres de todas as idades, cujo nome está escrito no Livro da vida,
confessaram a beleza de seguir o Senhor Jesus nos lugares onde eram chamados a
dar testemunho do seu ser cristão: na família, na profissão, na vida pública,
no exercício dos carismas e ministérios a que foram chamados[32].
O homem de hoje não tem a fé de Abraão. A fé é pôr-se a caminho e caminhar como
Abraão: Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai, e vai para a
terra que Eu te indicar. Farei de ti um grande povo, … e serás uma fonte de
bênçãos”(Gen 12, 1-3), “pai de inúmeros
povos (por que) Eu serei o teu Deus e da tua descendência” (Gen 15, 17-22; 17,
3. 7). A fé não é discorrer, é êxodo, de encontro em
encontro, sempre mais além até à face de Deus. E este êxodo jamais terá termo,
pois o horizonte é infinito[33].
A eternidade, dizia Gregório de Nisa,
é ir de começo em começo através de
começos que não tem fim. Este é o destino do homem como homo viator em contínua busca de Deus. Gabriel
Marcel dizia que o cristão é um homo
viator, um homem que marcha no seguimento de Cristo. É homo hospes, um hóspede em todos os sentidos. É um peregrino e
transeunte no mundo. Numa das suas e geniais intuições, Max Scheler definiu o
homem como um “buscador de Deus”. Tal definição enquadra perfeitamente com
Francisco de Assis. Durante toda a vida o Pobrezinho foi um incansável buscador
de Deus.
Por isso, ao longo deste ano fixamos o nosso olhar em
Jesus Cristo «autor e consumador da fé» (Heb 12, 2) e a lição que a Porta Fidei nos apresenta. Este desejo ardente do Santo Padre que vai conduzir a vida
da Igreja na sua peregrinação deste Ano que suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada
convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também para
intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na
Eucaristia, que é «a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte
de onde promana toda a sua força». Simultaneamente
esperamos que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua
credibilidade[34].
Estou consciente de que estas três pequeninas imagens
sejam uma guia que nos conduz ao longo deste tempo: a Marca, a Seta e o Anel[35].
A primeira imagem é a da marca: a linguagem da fé como a marca dos passos:
ele passou por aqui, mas já cá não está. Eis a sua pegada, ainda marcada na
nossa terra. Se o queremos conhecer pessoalmente e descobri-lo, ponhamos os pés
na marca dos seus passos e caminhemos em seu seguimento.
A segunda imagem é a da seta:
a linguagem da fé é como seta da estrada
que indica, em todas as circunstâncias, o nome da cidade e a sua direcção. Não
é o inventário de um conteúdo: é uma orientação para se seguir. Esta indicação
viria, no entanto, a despropósito e não falaria ao nosso coração, se não
exibisse, ao menos, a menção original da caridade.
A terceira imagem é, a do anel
duplo: a linguagem da fé é como um anel
duplo forjado em forma de oito. Partimo-lo em dois e cada um de dois
contratantes guarda metade dele como garantia de fidelidade e como sinal de
identificação. Cada uma das metades do anel, tornado um anel simples, traz em
si a marca da fractura que o declara incompleto. Se queremos encontrar o Outro
para reconstruir a unidade primeira do símbolo é necessário metermo-nos ao
caminho.
O Ano da Fé tem em vista transmitir uma experiência de
fé, e só depois, como consequência, leva a aprofundar o conhecimento do
mistério em que se acredita. Logo, não faz sentido nenhum que o ano da fé se
limite a ter de decorar umas coisas... Somos convidados para uma experiência de
fé e aprofundar o conhecimento do mistério de Jesus Cristo. Um ano para reflectir sobre a fé, para pedir a fé,
para evangelizar a fé no coração de muitos que sofrem uma crise profunda da fé;
para procurar ter uma fé mais adulta, amadurecida, mais culta. Uma fé mais evangélica, que impregne toda a vida e nos
ajude a viver com maior intensidade a adesão a Deus, à sua Palavra, ao seu
Amor. Por tanto, o ano da fé, obriga-nos a ser sinal vivo da presença do
Ressuscitado no mundo de hoje, devido à profunda crise de fé que atinge muita
gente.
Que saibamos nós, neste Ano de Fé,
contemplar Deus através do Rosto de Cristo como Clara de Assis adverte à Inês
de Praga: «fixa o teu olhar no Espelho da eternidade, deixa a tua alma
banhar-se no esplendor da glória e une o teu coração Àquele que é encarnação da
essência divina, para que contemplando-O, te transformes inteiramente na imagem
da sua divindade[36]»
e ousamos pedir uma Fé verdadeira como fez Francisco de Assis na Igreja de São
Damião, rezando[37]:
Ó glorioso Deus altíssimo,
Ilumina as treva do meu coração,
Concede-me uma fé verdadeira,
Uma esperança firme e um amor perfeito.
Mostra-me Senhor,
O recto sentido e conhecimento,
a fim de que possa cumprir o sagrado encargo,
que na verdade acabas de dar-me. Amem!
By: Afmend Sarmento, OFM
Bibliografia:
AQUIAR
Manuel de (trad.), as linguagem da fé,
edições paulistas, Apelação, Outubro 1976.
BARBOSA
Adérito Gomes, Cristãos com fé,
edições Paulinas, Prior Velho 2012
BENTO
XVI, Carta Apost. Porta da Fé, 6ª
edição, Edições Paulinas, Junho 2012
COUTINHO Jorge, Caminhos da razão no horizonte de Deus, Edições Tenacitas, 2010
DUQUE João, Homo Credens. Para uma Teologia da Fé, Universidade Católica Editora, Lisboa 2002.
DUQUE João, Homo Credens. Para uma Teologia da Fé, Universidade Católica Editora, Lisboa 2002.
FRANCISCO
DE ASSIS São, Escritos são Francisco e
Santa Clara de Assis, Ed. Franciscana Braga – 2001
IGREJA
CATÓLICA, Catecismos da Igreja Católica,
Gráfica de Coimbra
MERTON
Tomas, Vida e Santidade, Editorial
Franciscana, Braga 2007
RATZINGER
J, Introdução ao Cristianismo,
Herder, S. Paulo 1970
STEINER
Georg, As Lições dos Mestres,
Gradiva, Lisboa 2005
[1] COUTINHO Jorge, Caminhos
da razão no horizonte de Deus, Edições Tenacitas, 2010, p. 36
[2] Ibidem
[3] Ibidem
[4] BARBOSA Adérito Gomes, Cristãos com fé, Edições Paulinas, Prior Velho 2012, 87
[5] AQUIAR Manuel de (trad.), as linguagem da fé, Edições Paulistas, Apelação, Outubro 1976, p.
15
[6] BENTO XVI,
Carta Apost. Porta Fidei, 11 de
Outubro 2011, 1. AAS 103 (2011), pp. 723-734. Seguindo a edição portuguesa:
BENTO XVI, Carta Apost. Porta da Fé,
6ª edição, Edições Paulinas, Junho 2012.
[7] BENTO XVI, Porta Fidei, 6
[8] João DUQUE, Homo Credens. Para uma Teologia da Fé,
Universidade Católica Editora, Lisboa 2002. 116.
[9] MERTON Tomas, Vida
e Santidade, Editorial Franciscana, Braga 2007, p. 115
[10]BENTO XVI, Porta Fidei, 6
[11]J. RATZINGER, Introdução ao Cristianismo, Herder, S.
Paulo 1970, p. 43.
[12] AQUIAR Manuel de (trad.), op. cit., p. 25
[13] BENTO XVI, Porta
Fidei, 1
[14] AQUIAR Manuel de (trad.), op. cit., p. 19
[15] IGREJA CATÓLICA, Catecismos
da Igreja Católica, Gráfica de Coimbra 1993, no. 160
[16] BENTO XVI, Porta
Fidei, 9
[17] BENTO XVI, Porta
Fidei, 2
[18] BENTO XVI, Porta
Fidei, 3
[20] BENTO XVI, Porta Fidei, 7
[21] IGREJA CATÓLICA, Catecismo
da Igreja Católica, 163
[22] BENTO XVI, Porta
Fidei, 15
[24] BENTO XVI, Porta
fidei, 9
[26] Georg STEINER, As Lições dos Mestres, Gradiva, Lisboa
2005, 45.
[27] J. RATZINGER, Introdução ao Cristianismo, 162.
[28] J. RATZINGER, Introdução ao Cristianismo, pp. 152-153.
[29]BENTO XVI, Porta
Fidei, 10
[30] BENTO XVI, Porta
Fidei, 10
[31] IGREJA CATÓLICA, Catecismo
da Igreja Católica, 167
[32] BENTO XVI, Porta
Fidei, 13
[33] AQUIAR Manuel de (trad.), op. cit., p. 48
[34] BENTO XVI, Porta
Fidei, 9
[35]AQUIAR Manuel de (trad.), op. cit., pp. 52-52
[36]CLARA DE ASSIS, Santa, Terceira Carta de S. Clara à Inês de Praga, in «Escritos São Francisco e Santa Clara de Assis», Ed. Franciscana
Braga – 2001, p. 280
[37] FRANCISCO DE ASSIS, São, Oração diante do Crucifixo de S. Damião, in «Escritos são Francisco e Santa Clara de Assis», Ed. Franciscana
Braga – 2001, p. 29
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