quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Natal: o Logos fez-se carne!

Jesus ensinou-nos a viver o Natal. Aliás só Ele pode fazer Natal! Natal é um encontro com a vida. Certo dia Deus fez-se homem. E foi Natal! Foi Natal porque Deus nasceu no homem. Foi Natal porque o homem renasceu de Deus. Que coisa sublime: Deus ousou fazer-Se homem para que o homem pudesse receber o inefável privilégio de se tornar Deus!

Natal de Belém

Natal é a festa da comemoração do nascimento de Jesus, Filho de Deus, foi fixada em 25 de Dezembro desde o inicio do século IV, para a igreja do Ocidente e um pouco mais tarde para a do Oriente.
A Igreja primitiva reconheceu apenas um dia de festa: Dia do Senhor, isto é, o Domingo, ou seja, o oitavo dia. A primeira referência ao dia de Natal encontra-se num calendário romano do ano 336. Posteriormente ao Concílio de Nicea de 325, que proclamou a origem divina de Jesus contra o arianismo, contemporânea da edificação da primeira basílica de S. Pedro (330), construída pelo imperador romano Constantino após a proclamação do édito de Milão que dava a liberdade à Igreja (313), a festa do Natal parece ter sido celebrada primitivamente naquela basílica(1). Por volta da segunda metade do século IV, encontramos a indicação deste dia como data do Natale solis invicti no calendário civil, e ao mesmo tempo como data da celebração do Natal de Jesus. Por outro lado, 25 de Dezembro, data do solstício de inverno, estabelece uma relação bíblica e simbólica luz/trevas como Cristo vencedor absoluto das trevas do pecado(2). Para contrapor uma festa cristã a essa festa pagã, então, o cristianismo substituiu então o tema da festa pagã pelo tema cristão do mistério do nascimento de Jesus Cristo, já que os profetas anunciaram como “sol de justiça”.

O Papa Leão Magno (+461), chama ao Natal «sacramentum nativitatis Christi» (o sacramento do Natal de Cristo). Este padre da Igreja realça que o valor salvífico da celebração do Natal tem uma orientação pascal, dado que não é independente da Páscoa, o mais solene dos mistérios cristãos. Porque a Pascoa é o seu ponto de partida, o sacramento do Natal de Cristo renova os primórdios da salvação(3). De facto, para S. Leão Magno o mistério de Natal traz ao mundo a salvação, ou seja, o Natal já é o inicio do «sacramentum-mysterium paschale»; o cerne e centro do mistério da salvação que culmina na paixão, morte e ressurreição de Cristo. A propósito de Natal São Leão Magno exclama: «O Filho de Deus... uniu-se a nós e vinculou-nos a si de tal modo que a humilhação de Deus até à condição humana se tornasse uma elevação do homem até às alturas de Deus»(4). De facto, a Encarnação de Deus é a revelação do mistério de Deus, como fonte para levar o homem a participar na vida divina. São Leão Magno explica-nos novamente a essência da celebração do mistério do Natal na vida cristã actual: «As palavras do Evangelho e dos Profetas... inflamam o nosso espírito e ensinam-nos a compreender a Natividade do Senhor, este mistério do Verbo que se fez carne, não tanto como uma recordação de um acontecimento passado, mas sobretudo como um facto que se realiza sob os nossos olhos... é como se, na solenidade hodierna, ainda se proclamasse: “Anuncio-vos uma grande alegria, que será para todo o povo: hoje, na cidade de David, nasceu para vós um Salvador, que é Cristo Senhor”»(5) E acrescenta: «Reconhece, cristão, a tua dignidade e, tendo-te tornado participe da natureza divina, presta atenção a não recair, com uma conduta indigna, de tal grandeza na baixeza primitiva»(6)

Nestes últimos anos, com o progresso fulminante da globalização, o desenvolvimento da ciência tecnológica e a difusão rápida da telecomunicação, o termo “Natal” foi alterado no seu sentido verdadeiro na linguagem comunicativa da sociedade actual. Natal foi-se secularizando cada vez: é hoje o folclórico Pai- Natal, a árvore nórdica, são as luminárias, o fogo-de-artifício, consumismo desenfreado, a troca de presentes, os reencontros familiares… Contudo-como em-ressonâncias há júbilo, há festa, ecoam por toda a parte maravilhosos cânticos natalícios, de forma geralmente poética e ingénua, que transforma o nascimento de Cristo num ambiente de maravilhas e cheios de encanto, mas, sem grande motivação religiosa.

O sentido mais profundo é o nascimento do Filho de Deus, que Encarnou no seio da Virgem Maria feito homem como nós. O verdadeiro significado de Natal prende-se com o nascimento de Cristo, que veio ao mundo com o único propósito: o de remir os nossos pecados através da Sua própria morte, a fim de resgatar o homem e o mundo. Como dizia o Papa Bento XVI: «o Senhor compendiou a sua Palavra, abreviou-a (…) O mesmo Filho é a Palavra, o Logos; a Palavra eterna fez-se pequena - tão pequena a ponto de caber numa manjedoura. Fez-se menino, para que a Palavra possa ser compreendida por nós»(7). Portanto, Natal requer simplicidade e abertura para acolher “o Menino de Belém”, que no inicio criou todas as coisas e nos últimos tempos assumiu a nossa natureza humana, como está no Evangelho de S. João 1, 14: «Verbum caro factum est» (o Verbo fez-Se carne), enquanto, Tertuliano no século III, afirmava: «Caro salutis est cardo», «a carne é o fulcro da salvação»(8)

A Igreja considera o mistério do Natal como uma renovação do mistério pascal. Aqui reside o centro da vida litúrgica destes dois tempos fortes «depois da celebração anual do mistério pascal, nada na Igreja é mais venerável do que a celebração do Natal do Senhor e das suas primeiras manifestações: é o que faz no Tempo do Natal»(9). No entanto, a celebração anual do nascimento de Cristo é a participação no mysterium do mesmo Senhor que se fez alimento e bebida dos fiéis no sacramentum da salvação. Assim, a liturgia é a expressão da fé, dado que a celebração litúrgica do Natal ensina a Encarnação(10), do Filho de Deus feito homem, Aquele que assumiu toda a realidade humana excepto o pecado. Do mesmo modo, a Oração Colecta da Missa do dia de Natal exprime uma teologia simples, mas cheia de sentido e servindo profundamente como elo da ligação entre os mistérios da criação, da Pascoa e do Natal: «Senhor nosso Deus, que de modo admirável criastes o homem e de modo ainda mais admirável o renovastes, fazei que possamos participar na vida divina do vosso Filho que se dignou assumir a nossa natureza humana»(11). E é o mesmo hino de louvor na primeira antífona das Primeiras Vésperas da oitava do Natal do Senhor (1 de Janeiro): «Oh admirável mistério! O criador do género humano, tomando corpo e alma, dignou-Se nascer de uma Virgem; e, feito homem, tornou-se participantes da sua divindade»(12). É o mistério que os padres da Igreja exprimiram por estas outras palavras: «Deus fez-Se homem, para que o homem se tornasse Deus».

Natal de Grecio

Ao celebrarmos o Natal, quase em cada canto ou esquina de rua encontramos um presépio. Muita perguntas a fazer: Quem inventou o presépio? Que tem função um estábulo dentro de uma igreja? Que lição podemos tirar? Situemo-nos no século XIII para dar resposta a estas questões. Encontramos aqui a figura ilustre Francisco de Assis. O “Alter Christus” tinha mais profunda veneração pelo Natal do Senhor do que por qualquer outra solenidade. Dizia ele: «depois que o Senhor nasceu para nós, devemos assegurar a salvação»(13). Esta é a intuição profunda de Francisco acerca de Natal.

Foi introduzido por Francisco de Assis no século XIII. O “Poverello” influenciou a iconografia da natividade quando, em Greccio, em 1223, celebrou o Natal(14) com um presépio animado com a presença de burro e o boi. Giotto quem primeiro pintou a natividade à maneira franciscana. Foi portanto, sob a influência franciscana que, desde Greccio em 1223, se difundiu pelos quatro cantos do mundo, o costume de construir o presépio na época de Natal. Segundo a tradição, o primeiro a pensar, a construir e a ornamentar um presépio de Natal com as suas personagens e o boi, o jumento e as ovelhas, foi S. Francisco de Assis. Esse grande amigo da natureza e dos animais instalou um presépio numa igreja, e os fiéis acharam a ideia tão bela e sugestiva, que a adoptaram. Mais tarde, na Idade Média, começou a fazer-se a representação dos grandes Mistérios, espectáculos realizados nas próprias igrejas. E então eram personagens vivas a representarem a Sagrada Família nos acontecimentos do nascimento de Jesus. Não tardou que todas as igrejas fizessem o seu presépio de Natal e rivalizassem entre si no sentido de exibirem os figurantes mais luxuosamente vestidos. Mas isso já não era conforme com o espírito de pobreza da Sagrada Família nem do humilde santo de Assis(15). Mas, isto não significa que em toda a história do cristianismo não tivesse havido nenhuma representação da natividade ou o mistério da incarnação de Deus em Belém. Na basílica de Santa Maria Maior em Roma existia desde o século IV um oratório da Natividade representando o Natal, ou a gruta da Natividade em Belém. A intuição de Francisco que o levou a construir o presépio do Senhor, surgiu após a sua viagem a Terra Santa, em 1220. Podemos concluir que foi depois de visitar a gruta da Natividade de Belém, que, surgiu em Francisco o inflamável desejo de construir o presépio para celebrar de forma visível e impressionante a humildade do nascimento do Filho de Deus, no mistério da Encarnação. A suprema aspiração de Francisco, o seu mais vivo desejo e mais elevado propósito era exprimir a morte de Cristo na cruz e, do mesmo modo, o seu nascimento encena-se a noite de Belém. Na biografia do santo, estes dois sentimentos estão interligados: «dois sentimentos de Cristo empolgavam-no de tal maneira que o não deixavam pensar em mais nada: a humildade expressa no nascimento e o amor manifestado na Paixão»

O episódio de Greccio surgiu da seguinte maneira: «Um quinze dias antes do Natal, Francisco mandou chamar, um senhor da aldeia de Greccio, no vale de Rieti, e disse-lhe: “Se queres que celebremos em Greccio o próximo Natal do Senhor, vai imediatamente e começa já a prepará-lo como vou dizer. É meu desejo celebrar a memória do Menino que nasceu em Belém de modo a poder contemplar com os meus próprios olhos o desconforto que então padeceu e o modo como foi reclinado no feno da manjedoura, entre o boi e o jumento”»(16). Foi assim com o presépio que, o “alter Christus”, nos legou a representação viva do mistério da Encarnação do Filho de Deus na história da Igreja.

Na véspera desse dia, 24 de Dezembro de 1223, Francisco desempenhou a função de diácono17, com a voz sonora entoou o santo Evangelho. E surpreendeu ainda mais os povos dos arredores de Greccio com o seu simples e tocante sermão de Natal. Diz o seu biógrafo Tómas de Celano:
«A sua voz potente e doce, límpida, bem timbrada, convida os presentes às mais altas alegrias. Pregando ao povo, tem palavras doces como o mel para evocar o nascimento do Rei pobre e a pequena cidade de Belém. Por vezes, ao mencionar a Jesus Cristo, abrasado de amor, chama-lhe o “menino de Belém”, e, ao dizer “Belém” era como se imitasse o balir duma ovelha e deixasse extravasar da boca toda a maviosidade da voz e toda a ternura do coração. Quando lhe chamava “menino de Belém” ou “Jesus” passava a língua pelos lábios, como para saborear a doçura de tão abençoados nomes»(18). O Natal de Greccio foi portanto um acontecimento irrepetível e único na vida da Igreja. Aí, Francisco celebrou de uma forma concreta a Encarnação do Logos, o “Verbo fez-Se Carne”.

Na Carta a Todos os Fiéis, cheios de encanto acerca da Encarnação do Logos, Francisco dizia: «O Pai altíssimo, pelo seu arcanjo S. Gabriel, anunciou à santa e gloriosa Virgem Maria, que esse Verbo do mesmo Pai, tão digno, tão santo e glorioso, ia descer do céu, a tomar a carne verdadeira da nossa humana fragilidade em suas entranhas»(19). E prosseguiu: «Sendo Ele mais rico do que tudo, quis, no entanto, com sua mãe bem-aventurada, escolher a vida de pobreza»(20). O que atrai mais a atenção de Francisco é o Menino de Belém. Descreve-o de seguinte modo: «Porque o santíssimo Pai do céu, nosso Rei desde toda a eternidade, mandou lá do alto seu Filho dilecto, e Ele nasceu da bem-aventurada Virgem Santa Maria. (…) Porque nos foi dado o santíssimo e dilecto Menino, e por nós nasceu durante uma viagem e foi deitado num presépio, por não haver lugar para ele na estalagem»(21). Para Francisco, o que comove e fascina mais na Encarnação do Logos é a pobreza de Cristo, a simplicidade, a santa humildade no presépio de Belém e, mais do que tudo, o amor de Deus pelo homem. Por isso, Greccio transformou-se em nova Belém.

Que mensagem Francisco nos quer transmitir com o presépio de Greccio? Que cada presépio deve ser hoje para todos nós um templo consagrado ao Senhor. Como as gerações de então, nos dias de hoje, o menino Jesus está a dormir em muitos corações, sobretudo nos cristãos que se dizem “crentes” mas não praticantes. Por isso, este santo Natal a voz de Francisco ressoa desde Greccio aos quatro cantos do mundo: “oh vós que estais a dormir, acordai!”, porque nesse dia Deus se fez Menino e foi amamentado como qualquer criança…!

Que este Natal seja um reflexo do que já tinha acontecido há XXI séculos em Belém e que Francisco contemplou em Greccio há VIII séculos.
Deixemo-nos transformar pelo Logos, Verbo feito carne, a fim de que, saibamos a ama-lo e acolhe-lo no nosso coração, na nossa vida, nos nossos lares e nos ambientes de trabalho. Este, o grande milagre de Natal: o Logos feito carne; assumiu toda a nossa natureza humana, ao ponto de Lhe dar o nome Jesus; da palavra hebraica Jeschua, isto é, Javé ou Salvador. Votos de feliz Natal e um Ano Novo cheio de paz e prosperidade!


Notas:
1. FERREIRA José, «os mistérios de Cristo na liturgia», Gráfica de Coimbra, Lda, pag. 178
2. ESTEVES José F. Caldas e José M. G. CORDEIRO, «Liturgia da Igreja», Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, pag. 226
3. S. LEÃO MAGNO, Sermão sobre o Natal do Senhor, 27, 1
4. Ibidem, 27, 2
5. Ibidem, 29, 1
6. S. LEÃO MAGNO, Sermão 1 sobre o Natal do Senhor, 3
7. BENTO XVI, Homilia na solenidade do Natal do Senhor (24 de Dezembro de 2006): Acta Apostolicae Sedis (AAS) 99 (2007), 12.
8. TERTULIANO, De carnis resurrectione, 8, 3: PL 2, 806
9. SAGRADA CONGREGAÇÃO DOS RITOS – CONSILIUM, «Normas gerais sobre o Ano Litúrgico e o calendário 32», in EDREL, 134
10. A. COELHO, «Curso de liturgia romana, liturgia fundamental, liturgia laudativa, liturgia sacramental», Edições Ora & Labora, Mosteiro de Singeverga, Negrelos, 1950, pag. 164, apud José F. C. Esteves e José M. G. Cordeiro, «Liturgia da Igreja», Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, pag. 227
11. MISSAL ROMANO, Solenidade do Natal, Oração colecta da Missa do dia.
12. Antífona das Primeiras Vésperas da oitava do dia de Natal do Senhor (1 de Janeiro)
13. ESPELHO DA PERFEIÇÃO, Cap. CXIV, in S. Francisco de Assis, Escritos, Biografias, Documentos, Editorial Franciscana Braga – 1982, pag. 1007
14. Portanto, na noite de 25 de Dezembro de 1223. Como nota São Boaventura (LM X, 7), Francisco tinha-se munido da autorização papal. Não era então muito frequente a celebração da Eucaristia em “altar portátil”.
15. GUITTON Gérard, «Descobrir S. Francisco», Editorial Franciscana Braga, Braga 2004, pag. 71-72
16. TÓMAS DE CELANO, «Vida Primeira de Francisco», in S. Francisco de Assis, Escritos, Biografias, Documentos, Editorial Franciscana Braga – 1982, pag. 272-273.
17. Francisco era diácono. Diz Bartolomeu de Pisa que Francisco não quis receber o sacerdócio por humildade. São Bento, que era diácono, exerceu grande influência sobre o Poverello. Cf. Bihl em AFH 17 (1924) pag. 445-447
18. TÓMAS DE CELANO, «Vida Primeira de Francisco», in S. Francisco de Assis, Escritos, Biografias, Documentos, Editorial Franciscana Braga – 1982, pag. 272-273.
19. FRANCISCO DE ASSIS, «Segunda Carta a Todos os Fiéis (2CF), no. 4», in Escritos São Francisco e Santa Clara de Assis, Editorial Franciscana Braga – 2001, pag. 81
20. Ibidem, no. 5
21. FRANCISCO DE ASSIS, «Ofício da Paixão do Senhor (OP), no. 15», in Escritos São Francisco e Santa Clara de Assis, Editorial Franciscana Braga – 2001, pag. 61

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A cultura do SER e do TER

Uma escolha de vida

A cultura contemporânea, que perdeu o conceito da pessoa, perdeu igualmente o de conceito de maturidade. Na sociedade actual conjuga-se pouco o verbo SER. Hoje o que conta não é o SER, mas o ter, o fazer, o agir, o trabalhar, a inserção no mundo da produção. Enfim, estamos mergulhados na cultura do homo faber e homo sapiens.
As pessoas preferem conjugar o verbo sentir e acreditar, dizendo que o homem se deve realizar naquilo que sente. Como, por exemplo, nas vibrações sentimentais, nas relações instintivas e nas gratificações sensuais e emoções de fundo egoísta: o «segue o que sente».
No meio da sociedade de hoje, não constam os valores objectivos como Deus e a Pessoa. São substituídos pelas sensações subjectivas: os meus sentimentos, as minhas emoções, as minhas vibrações, as minhas gratificações.
Diariamente os mass media comunicam, como linguagem do homem do século XXI:
Sinto-me realizado: sou médico!
Sinto-me realizada: sou enfermeira!
Sinto-me realizado: dou aulas!
Nestas expressões estão patentes duas convicções:
Vale aquilo que faço; vale aquilo que sinto.
A nossa tendência é pensar que nos podemos realizar sozinhos. A nossa realização pessoal olha apenas ao sucesso, ao consenso dos outros, a uma fácil popularidade, ou seja, àquilo que parece ser. Desse modo o homem é tentado a transformar-se em «máscara, personagem, protótipo, celebridade».
Pelo contrário, o homem vale por aquilo que é e, não por aquilo que faz e sente. Não tanto pelo que aparenta, mas, sim, pela sua integração na totalidade do seres humanos.
Estas interpretações erradas da auto-realização induzem os homens a buscar a auto-realização onde ela não está. E acabam por criar pessoas iludidas, desiludidas, inconscientes, infelizes.
A sociedade contemporânea conjuga também estes verbos:
Produzir para ter;
Produzir mais para ter mais;
Ter mais para gastar mais;
Gastar mais para produzir mais.
Aliás, somos dominados pela cultura do consumismo, do materialismo do hedonismo. Propõe-se que os únicos saberes são os que se dão nas ciências experimentais, porque a única realidade é a natureza. Desaparece o sujeito e a sua história, absorvidos pelo objectos, como o que se conclui que não tem sentido as ciências humanas. O homem dissolveu-se no mundo das coisas, âmbito exclusivo das ciências experimentais. Daí o anonimato em que se sumiu a história e a sociedade. Só é válido o económico, as relações de produção, as massas trabalhadoras valorizadas desde a sua funcionalidade, etc. A novidade que se pode trazer a este mundo são as leis capazes de mudar as coisas e não as pessoas; a ética é substituída pelas estatísticas, que decantam as leis sociais até uma ou outra conduta, etc. (Bento XVI, Ratisbona 14, 02)
Diz-nos José Merino: o consumismo converteu-se num estilo de vida e fomentou uma ânsia insaciável de devorar seja o que for: coisas, objectos, pessoas, livros, valores, tempo, ideias, imagens, manias...
Consumir é uma forma de viver que exige ter e desemboca numa maneira de ser. Sou aquilo que consumo, e consumo tudo o que tenho. A sociedade envolveu-se numa girândola cruel, de que se arrisca a não sair nunca: e essa girândola cruel pode levar a humanidade à morte biológica e psicológica.
A morte biológica, que pode chegar com a guerra nuclear ou o suicídio ecológico. A morte psicológica, que pode chegar com a perda completa do sentido da vida.
Thomas Merton, monge trapista, analisando a sociedade de hoje, afirma que o maior problema da sociedade moderna é a crise da identidade. As pessoas não sabem quem são. Colocam o acento no que fazem e não no que são. Valorizam a produtividade, pautam a sua vida pelo consumismo. A nossa sociedade está marcada pela cultura do ter mais: dinheiro, casar, carro de marca, coisas, etc. Estamos numa cultura híper produtiva e hiperactiva. O resultado desta hiperactividade e hiperprodutividade evidencia-se no progressivo desconhecimento de nós mesmos, a ponto de perdermos a capacidade de estar a sós connosco mesmos.
Logo, se a categoria do “ter” exorbita dos limites do seu uso legítimo, desencadeia de seguida a má consciência da anti-verdade: o egoísmo, a agressividade, a alienação e o desespero. (Pietro Prini, in “Pensamento franciscano, sentido e actualidade”.
Francisco recusa, na sua motivação essencial, o primado do fazer e do ter. Portanto, nessa conquista do ser, para além do ter, Francisco de Assis, continua a ser modelo e ponto de referência para os que querem apostar nos verdadeiros valores e nas alegrias autênticas da existência.
É esta a mensagem franciscana: o homem não é um objecto ou uma essência que está feita e acabada, mas, antes, um sujeito que deve responder à realização das suas possibilidades como pessoa individual e social. O sentido da vida consistiu na substituição do primado do fazer e do ter pelo primado do ser, não do ser enquanto objecto, mas do ser que somos nós mesmos, numa irrenunciável vocação participativa. ( Pietro Prini)
Por isso, a pessoa é irredutível à natureza e ao sujeito enquanto tal. Foi Deus que chamou o homem a ser pessoa, ao dar-lhe nome. Com ele o homem responde na relação a Deus, uma prévia relação divina que o colocou na existência com um nome e uma vocação que o configura numa unidade irrepetível. (Von Baltasar, teodramática, I, 611)
Sendo assim, todo o homem é feito para ser imagem e semelhança de Deus. Somos uma realidade única, insubstituível e irrepetível. Não somos uma coisa mas uma pessoa com todo o nosso ser, porque somos obra prima de Deus. Não somos coisas nem animais, somos pessoas. Como diz o Papa BENTO XVI: «não somos o produto do acaso irracional e sem sentido de evolução. Cada um de nós é fruto dum pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário».
Portanto, no meu «eu» valho tanto quanto sou na realidade e totalidade do meu ser. Por isso, valho muito aos olhos de Deus, apesar de não ter um valor grande aos olhos humanos. Sou válido por tudo aquilo que sou na realidade e não pelo que aparento, ou pelo que os outros julgam de mim. As «coisas» são meios para nós chegarmos à plenitude. Nunca serão o fim ou a meta do homem.

Bibliografia:

1. MARTINI, Nicola de; Maturidade Plena a aposta decisiva.
2. MERINO, José António; São Francisco e tu. Ed. Franciscana Braga
3. PRINI Pietro; Pensamento Franciscano-Sentido e atualidade. Ed. Franciscana Braga.
4. O texto: Oração em silêncio; elaborado pela equipa Frajuvoc de Leiria.

Varatojo, 15 de Junho de 2011
Paz e Bem!
Festa de Doutor Seráfico S. Boaventura

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Sermão Sobre Oração

Nestes sermões, Santo António fala da oração como de uma relação de amor, que estimula o homem a dialogar docilmente com o Senhor, criando uma alegria inefável, que suavemente envolve a alma em oração. O santo recorda-nos que a oração precisa de uma atmosfera de silêncio que não coincide com o desapego de rumor externo, mas é experiência interior, que tem por finalidade remover as distracções causadas pelas preocupações da alma, criando o silencio na própria alma.
´´Deste ensinamento de Santo António sobre a oração captamos uma das características específicas da teologia franciscana, da qual ele foi o iniciador, isto é, o papel atribuído ao amor divino, e que é também a fonte do qual brota uma consciência espiritual e de qualquer conhecimento. De facto, amando conhecemos`` (Bento XVI).
Só uma alma que reza pode realizar progressos na vida espiritual; é este objeto privilegiado da pregação de Santo António. Ele conhece bem os defeitos de natureza humana, a nossa tendência a cair no pecado e, portanto, exorta a continuar a combater a inclinação da avidez, do orgulho, da impureza, e a praticar as virtudes da pobreza e da generosidade, da humildade e da obediência, da castidade e da pureza. Por este motivo, o Santo convidou várias vezes os fiéis a pensar na verdadeira riqueza, a da Cruz, que tornando bons e misericordiosos, faz acumular tesouros para o Céu.
Santo António, na escola de Francisco, coloca sempre Cristo no centro da vida e do pensamento, da ação e da pregação. Esta é outra característica típica da teologia franciscana: o cristocentrismo. Ela contempla benevolamente, e convida a contemplar, os mistérios da humanidade do Senhor, o homem Jesus, de modo particular, o mistério da Natividade, Deus que se fez Menino, se entregou nas nossas mãos: um mistério que suscita sentimentos de amor e de gratidão para com a bondade divina.
´´Por outro lado a Natividade, ponto central de amor de Cristo pela humanidade, mas também a visão do crucifixo inspira em Santo António pensamentos de reconhecimento para com Deus e de estima pela dignidade da pessoa humana, de modo que todos, crentes ou não crentes, possam encontrar no crucificado e na sua imagem um significado que enriquece a vida``( Bento XVI).
Meditando estas palavras, podemos compreender melhor a importância da imagem do crucifixo para a nossa cultura, para o nosso humanismo nascido da fé em Cristo. Precisamente olhando para o crucifixo
Vemos, como diz Santo António, como é grande a dignidade humana que aparece no espelho do crucifixo, e olhar em sua direção é sempre fonte do reconhecimento da dignidade humana.
Fr. Osório Ximenes

terça-feira, 17 de maio de 2011

A escola de amor; do "Eros" ao "Ágape"


Um dos aspectos mais marcantes na vida dos jovens é a sede de amor. O amor mais humano e comum parte duma relação entre um homem e uma mulher que é sustentada pela liberdade. É um encontro e uma doação gratuita, a partir do interior, originada por um impulso natural em ordem a um caminho de crescimento mútuo. Diz claramente Leonardo Boff: «todo o varão cresce e amadurece sob o olhar da mulher e toda mulher desabrocha para a sua identidade adulta sob o olhar do varão».
O amor afectivo entre homem e mulher “eros” exige um permanente amadurecimento para se darem um ao outro. Amar não é apoderar-se do outro, mas sim, dar-se ao outro para se completarem. Esse amor tem um valor deveras sublime, que significa dar-se ao cuidado do outro e pelo outro. Por ele está disposto ao sacrifício. Este chama-se “amor ágape”.

O amor convida-nos a ver o outro sem procurar possuí-lo. Gostamos muito dele sem pretender ser seu dono. É dificil atingir esta liberdade de coração sem ser presa da cultura de mercado, em que tudo existe para ser adquirido e usado, mesmo as pessoas. Temos que aprender a ver o outro correctamente, com olhos que não devorem nem os outros nem o mundo. S. Tomás escreveu «ubi amor, ibi oculos».
No mundo dos jovens de hoje brinca-se com a expressão: “Love is blind”. Pelo contrário, o amor não é cego: tem a sua maneira de ver, os seus olhos próprios, segundo o velho adágio latino: “ubi amor, ibi oculus”. Sabe observar e ver, não com olhar possessivo e de captação, mas com um olhar de doação, livre e gratuito, a condição para se poder viver em transparência comunitária, superando suspeitas destruidoras. (John Powel)

Khalil Gibran no seu livro «O profeta», o personagem Almitra pediu: «fala-nos de amor».
O profeta ergueu a cabeça para a multidão em silêncio. Depois, com voz forte e firme, exclamou:
«Quando o amor vos fizer sinal, segui-o, ainda que os seus caminhos sejam duros e difíceis. E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos, ainda que a espada escondida na sua plumagem vos possa ferir. E quando vos falar, acreditai nele, apesar de a sua voz poder quebrar os vossos sonhos como vento norte ao sacudir o jardim».
Porque, assim como o vosso amor vos engrandeceu, também deveis crucificar-vos. E, como se elevam à vossa altura e acariciam os ramos mais frágeis que tremem ao sol, também irá até às raízes. Sacudindo o seu apego à terra como braçados de trigo, ele vos leva, malha-vos até ficardes nus. Passa-vos pelo crivo para vos livrar do joio. Mói-vos até ao branco mais puro. Amassa-vos até ficardes maleáveis e prontos para o seu fogo.
Tudo isso vos fará o amor. O único caminho para o conhecimento da vida. O amor alimenta-se a si próprio, o amor não possa nem quer ser possuído, porque o amor basta ao amor.
Todos nós temos sede de amar e sermos amados. Somos gente apaixonada. Matar toda a paixão seria atrofiar e secar a nossa humanidade. Não somos anjos nem bestas, mas sim, homem de carne e osso. Por isso mesmo é normal sentirmo-nos apaixonados. Apaixonar-se é «para muitas pessoas a experiência mais reveladora e extraordinária das suas vidas, em que o centro de significação é de repente arrancado de si mesmo, e o ego adormecido é abalado, deslocado, para a consciência de uma realidade inteiramente outra»

Quando Thomas Merton, um cisterciense americano, se encontrava no auge da sua fama como escritor espiritual, apaixonou-se desesperadamente por uma enfermeira que o tinha tratado no hospital. Escreveu no seu diário que estava «atormentado pela consciência crescente de que estávamos apaixonados e eu não sabia como poderia viver sem ela»

Essa experiência foi vivida pela Marta. Na família de António e Maria, o Senhor concedeu-lhes uma única filha, a Marta. Ela é considerada uma rapariga bonita, inteligente, cheio de bondade e amabilidade, cheia de misericórdia para com os que sofrem ao seu lado.
Ela iniciou a sua grande aventura no processo de sair do seu mundo de analfabetismo com grande sucesso. Aí, deu-se a conhecer com Marco, um rapaz, amável e muito simpático. Ambos estudaram no mesmo tecto; Saint Mary School. Quando chegou o momento de puberdade, ambos se sentiram apaixonados uns pelo outro. Por fim, Marco desabafou o seu sentimento mais profundo à sua amiga:«sinto-me apaixonado por ti! Amo-te tanto, desejo-te muito e não posso viver sem ti! Também eu!Retorquiu Marta. Assim, ambos envolveram-se num mar de paixões».

Viveram este tempo de namoro com grandes dificuldades, incluindo o desentendimento, as turbulências e as crises da vida, mas, ambos se mantiveram firmes nas suas promessas.
Passou algum tempo, Marco pediu-lhe para se casarem. Ela aceitou o pedido. Os pais aceitaram os pedidos dos filhos. Assim, ambos deram mais um passo na busca de conhecimento um do outro. Apesar de ambos estarem comprometidos, sentiam que o caminho a percorrer para uma verdadeira maturidade ainda é longo e ambos estão na fase final do ano lectivo.
Com o decorrer do tempo, chegou o momento certo para se decidirem pelo casamento. Ambos foram graduados e ostentam, felizes, os diplomas nas suas mãos. Com profunda alegria, Marco disse:Terminei o meu curso e vou casar com a minha querida Marta. Eu amo-a tanto!» Todos os amigos os felicitaram: «Parabéns, sejam felizes! Que a vossa família seja mais feliz do mundo».
Perante todo este barulho, Marta sentiu-se apreensiva e uma coisa estranha irradiava no seu coração. Ficou infeliz com a festa da graduação, refugiou-se dos seus amigos e recolheu a um lugar solitário para reflectir. Neste discernimento, sentiu uma voz a chamar pelo seu nome: «Vem e segue-me!”. Ela ficou sem entender nada. Senhor, tu chamas-me? Não, eu não sou digna disso! Ficou passiva e procurou fugir deste chamamento. Mas, quando mais ela rejeitava mais forte essa inquietação lhe gritava no fundo do coração.
Chegou a casa todo feliz e bem disposta. Tinha os olhos lúcidos como se tivesse algo para comunicar lá do muito profundo de si. Sentou-se, fitou primeiro o rosto da mãe, depois o do pai e, finalmente, disse: “Vou ser uma freira! Quero quebrar o laço do mundo que me prende”. Naquele momento parecia sentir o tecto desabar sobre si. O pai ralhou com ela, a mãe zangou-se com o pai, enfim, uma discussão forte entre todos…

A mãe ficou pasmada e disse-lhe: «Nem penses, filha. És noiva, sabes que o Marco te ama. Ele tem muita riqueza para te fazer feliz”. Marta só meditava no seu coração sem dar qualquer resposta à sua mãe.
Ficou preocupada. Já ninguém gosta mais dela: os pais, os amigos. E ninguém podia dar-lhe uma mão para a ajudar a solucionar esse problema. Os amigos consideraram-na uma louca, pois a questão religiosa é um escândalo para eles.
Dia após dia, Marta sentiu-se cada vez mais solitária. Nessa solidão e silêncio, encontrou uma solução: «Vou pedir conselho ao meu pároco». No dia seguinte, pôr-se a caminho da Paróquia, e aí foi atendida.
Diante do pároco, desabafou abertamente o seu desejo de dar um rumo certo à sua vida; «Eu queria seguir a minha estrela, aquela que me chama: “vem e segue-me!”. Mas não sei como posso começar dar o primeiro passo. No princípio, acho uma coisa estranha e tentei para fugir. Mas essa voz persegue-me por onde quer que eu vá. Penso que não sou digna dessa vida! Tentei falar com os meus pais, mas eles ignoraram o meu pedido. Os meus amigos disseram que sou uma louca».
O pároco ouviu e ponderou a atitude daquela jovem e prometeu-lhe: «Hei-de ajudar-te, na medida do possível, a alcançares o teu objectivo». Deu-lhe os seus conselhos e algumas informações úteis sobre a vida religiosa. Certo dia, conduziu-lhe ao convento das irmãs, e aí foi admitida. Uma nova etapa para a sua vida!..

Na véspera, da sua partida para convento, pegou numa folha branca e começou a escrever uma carta para Marco: «Querido Marco, antes de mais nada, eu peço-te desculpa por ter rejeitado o nosso casamento. Obrigada pela tua companhia ao longo do meu crescimento pessoal. É verdade que, através de ti, eu aprendi a amar e tu me ensinaste como é amar uma pessoa, sem ser dono de ninguém.
Neste momento, eu estou verdadeiramente apaixonada por outra pessoa. Tenho a certeza de que Ele me ama e me chama já desde o tempo em que eu ainda estava no seio da minha mãe. Ele chama-seJESUS CRISTO. Peço imensa desculpa se tu não fores aceitar esse desafio. Eu tenho de ir. Vou, mas não é para sempre. Um dia, mais tarde, eu voltarei. Não voltarei para ti ou para ninguém, mas voltarei para todos, porque o meu amor não é inclusivo, é incondicional. Nunca me esquecerei de rezar por ti. Tu hás-de encontrar uma pessoa certa para te acompanhar ao longo da tua vida, uma pessoa mais bonita do que eu. Eu sei que tu me amas. E também te amo, mas o amor de CRISTO por mim é mais forte do que possas imaginar».

Desta forma, Marta seguiu o seu caminho. Toda a casa ficou desarrumada. Os pais negaram-na, dizendo: Tu não és a nossa filha! Sem o acompanhamento dos pais dela, mesmo assim foi sozinha para o convento. Apesar de os pais a negarem, ela continuou feliz, radiante de alegria, uma alegria que ninguém pode imaginar.
Numa linda manhã, a caixa do correio recebeu uma carta para Marco. Ele tomou-a na mão, e, com uma imensa alegria, deu um beijo a esta carta antes de a abrir. Depois, abriu-a e leu. Neste instante, ficou frustrado, e profundamente desanimado: «Traidora... traidora... traidora é tudo o que consegue dizer». As lágrimas e a fúria tomam posse da sua face.
À noite, antes de dormir, Marco gravou no seu diário: «De hoje em diante, o meu maior inimigo éJESUS CRISTO por me ter roubado uma pessoa que eu amo tanto na minha vida». Para ele, perder a amada criava-lhe muita dor. Não conseguia viver sem ela neste mundo. Como diz Otelo, face à perda da sua amada Desdémona: «Nela eu tinha refugiado o meu coração, nela tenho que viver ou não ter vida, ela é a fonte de onde brota a minha corrente, porque senão seco». Assim é o sabor do amor. Amor torna-nos felizes mas também nos causa dor e sofrimento, se não for a verdadeira escolha da vida.
Todos os dias Marco chorava por ela. Fez todos os esforços para a tirar do convento, mas não conseguiu tirá-la da mão do Senhor.
Todas as coisas são amargas para ele. O amor quando é desamado dói. O tédio, o desânimo e a fúria acompanharam-no muito tempo, ao longo desta crise de amor.
Com o de correr do tempo, esforçou-se por esquecer este drama da sua vida, e jurou que não cairia mais nestas histórias de amor.
Talvez o Senhor permitia que nós encontremos e amemos uma pessoa incerta antes de encontrarmos a pessoa certa para companhia da nossa vida. O que é importante é sempre sabermos agradecer a dádiva de Deus.

Passaram alguns anos. Num certo domingo, Marco foi à missa. Sentado no banco lá no fundo da igreja, fixou o seu olhar no crucifixo que estava atrás do altar. O seu coração estava inquieto, pois, estava muito irritado com Cristo. De repente, sentiu uma luz forte irradiar diante dele. Caiu por terra. Alguns segundos depois, apareceu uma mulher bonitíssima com um vestido branquíssimo. Acolheu-o com o seu amor maternal: «Marco, porque é que tu não deixas a tua amiga seguir o meu filho? Ele foi crucificado nesta cruz por causa de ti, e tu não tens pena dele? O meu filho tem maior amor por ela que tu. Ele entregou-se por ti, por ela, e por todos. «Ninguém maior amor do que o que dá a vida pelos seus amigos».

O amor em nós culminará no despojamento daqueles que amamos, devemos deixà-los partir, devemos deixá-los ser o que são; darmos-lhes a liberdade de construírem as suas próprias vidas.
Marco reconheceu diante do crucificado a sua culpa, e chorou amargamente por não ter deixado a sua amiga livre para escolher o seu caminho: «Jesus, filho de David tem misericórdia de mim». Doravante, ele percebeu que é isto que se chama VOCAÇÂO. A vocação é um chamamento de Deus que se sente de várias maneiras. “…Pois é Deus quem realiza em nós o querer e o fazer” (fil.2,13). Em todas as histórias da vocação, a iniciativa é sempre de Deus. Mesmo que a percepção não seja inicialmente clara, a mão de Deus permanece sempre estendida sobre a pessoa eleita e predilecta. Se é Deus que olha para o homem, apaixonando-se dele, e o torna inquieto, como diz Santo Agostinho, o homem, na sua inquietude, e numa atitude de resposta, não deve cessar de elevar as suas aspirações até Deus. Consequentemente, como num diálogo amoroso, os dois desejos, se forem verdadeiros, fundem-se num só. A pessoa, quando é conduzida a entrar no mais profundo de si mesmo, pode descobrir que a sua vontade e a de Deus se fundem num só querer e num só agir.
O chamamento, que é “divinamente humano”, parte precisamente do contexto da história de cada um. O importante é que cada chamado/a se predisponha a escutar os seus desejos e aspirações numa atitude profunda de relação com Deus, para que, purificados os seus desejos e aspirações, possa acolher, assumir e viver a vocação como desafio a uma vida “humanamente divina”.
No entanto, o chamamento de Deus ouve-se através de uma voz muito baixinha onde só se ouvem os interlocutores, isto é, entre Deus e a pessoa escolhida; «A verdadeira voz do amor é uma voz muito suave, que me fala dos pontos mais recônditos do meu ser. Não uma voz ruidosa, que se imponha e ejixa atenção. É a voz do Pai... É uma voz que só pode ser escutada por aqueles ou aquelas que se deixam tocar.» (Henri Nouwen)

Por fim, Marco regressou a casa com uma profunda alegria e comoção, por ter participado no processo de crescimento da sua amiga, quer na parte física ou psicológica, até que ela encontrou a sua verdadeira felicidade.
Alguns anos passados, Marta fez a sua profissão religiosa, a sua entrega definitiva ao serviço de Deus. Será o primeiro encontro com os pais depois de ter escolhido esta vida. Aí, estavam os pais e Marco. Com uma enorme alegria que ninguém possa imaginar, ela fez uma pequena história sobre a sua caminhada, antes e depois de encontrar e entrar nesta vida religiosa: «quando era adolescente, não sabia nada sobre a vocação. Portanto, vivi uma vida intensamente mundana e perdi tanto tempo com as coisas passageiras. Graças à sua misericórdia, hoje eu me encontro no meu verdadeiro caminho, o que me faz feliz para sempre. Muito obrigado aos meus pais e aos amigos que partilharam a vida comigo ao longo do meu de crescimento como jovem».
É este o seu último encontro com os pais. Marta foi depois para a terra de missão. Aí, deu a sua vida para a vida de muitas pessoas, construiu casa para acolher as crianças órfãs, para os doentes... Viveu feliz até à vinda da irmã morte.
Com efeito, uma vida de amor embora difícil, não é árida e sem gratificações. De facto é a única vida plena e feliz, pois é preenchida por preocupações tão profundas como a vida, tão amplas como o mundo e de alcance tão vasto como a eternidade.
Na nossa vida diária, agarramo-nos muitas vezes às pessoas porque pensamos que precisamos delas. A frase: “eu preciso de ti” é vista como uma experiencia de amor.

Algumas pessoas gostam que lhes digam: “não posso viver sem ti”. O verdadeiro amor não tem por base as minhas necessidades. O verdadeiro amor não é possessivo. O verdadeiro amor dá às outras pessoas liberdade para respirarem e para serem quem são. O apego aos outros e a dependência excessiva em relação a eles não é amor, segundo Albert Nolan. Pois, o amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
O que teria acontecido a Marta se Marco não a deixasse escolher o seu caminho? Perguntava William Blake: «Pode chamar-se amor àquilo que bebe os outros como uma esponja bebe a água?» De facto, ela não seria feliz com Marco porque não era ele o seu verdadeiro amor. Ela teve uma coragem incrível no seu ideal. Para atingirmos uma meta é necessário lutar contra as marés. Temos que dizer “Sou dono do meu destino”. Com a libredade interior vamo-nos tornando pessoas livres na escolha, sem nos tornarmos aquilo que achamos que os outros querem que sejamos. E assim, quando as nossas acções são expressão de medo, a liberdade interior torna-nos facilmente prisioneiros das ilusões. Apesar de tudo ela sentiu uma excessiva dor e ternura. Mas conseguiu deixar-se ferir pela inteligência do amor, mas sangrar feliz pelo seu ideal. Ela permaneceu fiel porque este é o único caminho do amor.

O amor significa ter consideração, aceitação e interesse pelas pessoas a quem amo. É uma auto-entrega.
Por isso, amor é uma coisa que se constrói ao longo da nossa vida, é uma escola de vida.
Termino com as palavras de Michel Qouist: «aprender a amar, não é fazer muitas experiencias; é respeitares-te e respeitares todos os outros, para seres capaz de respeitar profundamente o corpo e a pessoa de um outro; é conquistares-te para te poderes dar a um outro, é esqueceres-te para não te apoderares de um outro, mas sim, ofereceres-te; é abrires-te aos outros, aceitares os outros, compreenderes os outros, permutares com os outros, para poderes acolher um outro»

Bibliografia
  1. Gibran Khalil, o profeta, ed. Alma azul.
  2. Powel John, porque tenho medo de amar? Ed. Paulinas.
  3. Nolan Albert, Jesus hoje, uma espiritualidade de liberdade radical, Ed. Paulinas.
  4. Texto de Pe. José Negri, os olhos no amanhã; o que eu quero ser na vida. Foi adaptado pelo Frajuvoc de Leiria.
  5. Texto de Timothy Radclife, Mestres Geral dos Dominicanos, a promessa de vida; a vida afectiva.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

O milagre da Páscoa


Após a hora terrível do Calvário, tudo parecia irremediavelmente perdido:
O mundo assustou-se, ficou triste e perdeu a esperança,
A humanidade ficou orfão nas mãos de Maria,
As trevas cobriram a superfície da terra,
O Senhor descansou no silêncio do sepulcro.

A luz radiosa do sepulcro, aberto para a vida,
inundou aquele primeiro dia da semana.
É o milagre daquela madrugada de Páscoa,
Quando as santas mulheres ouviram do Anjo o anúncio da feliz notícia: “Por que motivo procurais entre os mortos Aquele que vive? Não está aqui. Ressuscitou!”

A vida não teria sentido,
se Cristo ficasse suspenso no madeiro da Cruz do Calvário.
A vida não teria sentido,
se Cristo ficasse envolvido pelas ligaduras e no silêncio do sepulcro.
Mas, todas as vidas doravante têm um novo sentido com o milagre daquela manhã:
Não temais. Ide avisar os Meus irmãos que partam para a Galileia. Lá Me hão-de ver!”
A alegria invade a terra e os céus, porque o Senhor se ergueu vitorioso do túmulo e retomou a vida.

Assim, no silêncio da aurora de Páscoa
Deus revela o seu mistério de alegria:
Cristo venceu a morte,
Cristo derrotou o absurdo,
Cristo subjugou a angústia,
Cristo triunfou do pessimismo e dominou sobre todas as dominações.

A Ressurreição de Cristo dá estatuto de livre condição aos cativeiros;
Porqe Ele é o libertador que rompe as cadeias e algemas da escravidão.
A Ressurreição de Cristo transforma o homem velho do pecado em vida nova de graça;
Porque Ele é o único Salvador e Redentor da humanidade.
A Ressurreição de Cristo é a luz que ilumina toda a nossa existência;
É a verdade que dá sentido último e definitivo a todas as realidades humanas e à criação inteira.

Cristo ressuscitado projectou em todos os tempos a luz e a vida, o caminho da eternidade.
O oceano imenso da glória de Deus difundiu-se pelo universo,
A vida do Ressuscitado penetrou nos corações dos homens.
Apesar de os homens terem um coração de pedra, endurecidos pelo egoísmo,
o Senhor os transforma num coração de carne, irrigado pelo amor divino.
Cristo Ressuscitado abriu-nos uma porta para a vida futura.
Deixou enraizada no coração humano a certeza do absoluto.

É este o milagre da Páscoa:
“O Senhor ressuscitou verdadeiramente, Aleluia!”
Ele nos convida a partimos para a Galileia. Lá O veremos!
Vamos percorrer os caminhos da vida a transmitir esta mensagem:
Ressurexit, et adhuc tecum sum, alleuia!
Que quer dizer: Ressuscitei e estou convosco para sempre, Aleluia!

Afmend OFM
Adaptação, in Obras Escolhidas de D. António Ribeiro

domingo, 13 de março de 2011

Quaresma: tempo de peregrinação interior

Uma das épocas singulares no tempo litúrgico da igreja católica é a Quaresma. É um tempo de preparação para a celebração da Páscoa do Senhor. É um convite ao arrependimento e à conversão.

Quaresma é “o caminho que leva ao lugar do coração”. Todos os caminhos nos conduzem a uma meta...neste tempo Santo, o nosso olhar fixa-se no caminho para o Calvário. É aí que queremos chegar. Por isso, ‘colocarmo-nos a caminho’ e ‘predispormo-nos’ para escutar atentamente a voz interior da nossa consciência e desfrutar a Palavra do Senhor que nos conduz ao longo deste tempo litúrgico.


“A Quaresma é o tempo privilegiado da peregrinação interior até Àquele que é a fonte da misericórdia. Nesta peregrinação, ele próprio nos acompanha através do deserto da nossa pobreza, amparando-nos no caminho que leva à alegria intensa da Páscoa” (João Paulo II, mensagem para a Quaresma 2004)


A Quaresma é um tempo no qual somos convidados a parar; para revermos com verdade a nossa maneira de ser, a esforçarmo-nos por descobrir qual é a vontade ou o projecto que Deus tem para cada um de nós.

Mais do que preocuparmo-nos em como fazer (simples atitude de repetir actos ou gestos que, muitas vezes, acabam por ser superficiais, sem nenhum tipo de compromisso pessoal), se calhar é importante perguntarmos pelo porquê do conjunto de «rituais» que adoptamos, ou em função do «cumprimento das normas», ou com a intenção da nossa permanente atitude de conversão.


O deserto que sua santidade João Paulo II menciona aqui; é entendido como lugar, espaço físico-geográfico em que o Homem é chamado a viver a dialéctica da felicidade e da desgraça, da verdade e da falsidade; e a procurar a harmonia que, no seu dia-a-dia, se vai consolidando, com a consciência de nem sempre realizar o que se propõe alcançar.


Os Quarenta dias da Quaresma que iremos saborear neste tempo litúrgico significam, por sua vez, a totalidade da nossa existência, a vida vivida inteiramente inserida no devir do tempo, plenamente absorvida pelos acontecimentos, progressos e recuos que constituem a história pessoal cada um.

Ao longo destes quarenta dias, a Igreja propõe de modo especial alguns gestos que cada um possa fazer como a atitude de conversão, tais como Jejum, Esmola e Oração.


O JEJUM

«O JEJUM» tem como finalidade o amor de Deus e o abandono ao Pai. O verdadeiro jejum transforma-se no puro acto de amar. O jejum é uma permanente atitude de alteridade, isto é, busca ininterrupta de diferentes formas de sair/ ir ao encontro, numa atitude de humilde e de reverência, não como quem se impõe aos demais, mas como quem serve.


O Jejum, que pode ter diversas motivações, adquire para o cristão um significado profundamente religioso: tornando mais pobre a nossa mesa aprendemos a superar o egoísmo para viver na lógica da doação e do amor; suportando as privações de algumas coisas – e não só do supérfluo – aprendemos a desviar o olhar do nosso «eu», para descobrir Alguém ao nosso lado e reconhecer Deus nos rostos de tantos irmãos nossos. Para o cristão o jejum nada tem de intimista, mas abre em maior medida para Deus e para as necessidades dos homens, e faz com que o amor a Deus seja também amor ao próximo” (cf. Mc 12, 31). (Bento XVI, mensagem para a Quaresma 2011)


A ESMOLA

«DAR ESMOLA» significa, antes de mais, sair ao encontro de, entrar em relação com, escutar o outro para conhecê-lo bem...sem o conhecimento do outro, mais difícil se torna a partilha e, consequentemente, a entrada na comunhão.

A atitude de quem oferece/dá tem de ser radicalmente prudente, comedida, ponderada. Porque quem está disposto a «dar», precisa também de perceber se o outro está em condições de «receber» a oferta. Praticar a caridade não é um simples acto de «dar». A caridade é fruto do amor de Deus em nós e, por isso, deve ser saboreado/provado com gozo, simplicidade e humildade.


No nosso caminho encontramo-nos perante a tentação do ter, da avidez do dinheiro, que insidia a primazia de Deus na nossa vida. A cupidez da posse provoca violência, prevaricação e morte: por isso a Igreja, especialmente no tempo quaresmal, convida à prática da esmola, ou seja, à capacidade de partilha. A idolatria dos bens, ao contrário, não só afasta do outro, mas despoja o homem, torna-o infeliz, engana-o, ilude-o sem realizar aquilo que promete, porque coloca as coisas materiais no lugar de Deus, única fonte da vida. Como compreender a bondade paterna de Deus se o coração está cheio de si e dos próprios projectos, com os quais nos iludimos de poder garantir o futuro? A tentação é a de pensar, como o rico da parábola: «Alma, tens muitos bens em depósito para muitos anos...». «Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma...» (Lc 12, 19-20). A prática da esmola é uma chamada à primazia de Deus e à atenção para com o próximo, para redescobrir o nosso Pai bom e receber a sua misericórdia.” (Bento XVI, mensagem para a Quaresma 2011)


A ORAÇÃO

«A ORAÇÃO» brota da escuta da Palavra. Para que a nossa oração não seja palavreado, tem de se alimentar no silêncio. ‘como é bom sentir que Deus vem ao nosso encontro! ‘ Deixemos, então, que ele nos encontre nesta Quaresma.

A ORAÇÃO torna-se assim num movimento de encontro ascendente e descendente do Deus, dador da vida e da comunhão, com o homem, criado e chamado à comunhão com Ele. Rezar é também colocar-se na presença de Deus, numa atitude de confiança filial e de radical entrega nas mãos daquele que por nós tudo ofereceu; é estar a sós com Deus.


Em todo o período quaresmal, a Igreja oferece-nos com particular abundância a Palavra de Deus. Meditando-a e interiorizando-a para a viver quotidianamente, aprendemos uma forma preciosa e insubstituível de oração, porque a escuta atenta de Deus, que continua a falar ao nosso coração, alimenta o caminho de fé que iniciámos no dia do Baptismo. A oração permite-nos também adquirir uma nova concepção do tempo: de facto, sem a perspectiva da eternidade e da transcendência ele cadencia simplesmente os nossos passos rumo a um horizonte que não tem futuro. Ao contrário, na oração encontramos tempo para Deus, para conhecer que «as suas palavras não passarão»” (Bento XVI, mensagem para a Quaresma 2011)

Assim, estaremos capazes de viver uma Quaresma agradável aos olhos de Deus e favorável à «nossa realização», como filhos e filhas queridos por Deus.


Afmend ofm

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  1. Texto Quaresma: o caminho que leva ao lugar do coração, foi elaborado pelo Frajuvoc de Leiria
  2. Bento XVI, mensagem para a Quaresma 2011

 
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