quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Natal: o Logos fez-se carne!

Jesus ensinou-nos a viver o Natal. Aliás só Ele pode fazer Natal! Natal é um encontro com a vida. Certo dia Deus fez-se homem. E foi Natal! Foi Natal porque Deus nasceu no homem. Foi Natal porque o homem renasceu de Deus. Que coisa sublime: Deus ousou fazer-Se homem para que o homem pudesse receber o inefável privilégio de se tornar Deus!

Natal de Belém

Natal é a festa da comemoração do nascimento de Jesus, Filho de Deus, foi fixada em 25 de Dezembro desde o inicio do século IV, para a igreja do Ocidente e um pouco mais tarde para a do Oriente.
A Igreja primitiva reconheceu apenas um dia de festa: Dia do Senhor, isto é, o Domingo, ou seja, o oitavo dia. A primeira referência ao dia de Natal encontra-se num calendário romano do ano 336. Posteriormente ao Concílio de Nicea de 325, que proclamou a origem divina de Jesus contra o arianismo, contemporânea da edificação da primeira basílica de S. Pedro (330), construída pelo imperador romano Constantino após a proclamação do édito de Milão que dava a liberdade à Igreja (313), a festa do Natal parece ter sido celebrada primitivamente naquela basílica(1). Por volta da segunda metade do século IV, encontramos a indicação deste dia como data do Natale solis invicti no calendário civil, e ao mesmo tempo como data da celebração do Natal de Jesus. Por outro lado, 25 de Dezembro, data do solstício de inverno, estabelece uma relação bíblica e simbólica luz/trevas como Cristo vencedor absoluto das trevas do pecado(2). Para contrapor uma festa cristã a essa festa pagã, então, o cristianismo substituiu então o tema da festa pagã pelo tema cristão do mistério do nascimento de Jesus Cristo, já que os profetas anunciaram como “sol de justiça”.

O Papa Leão Magno (+461), chama ao Natal «sacramentum nativitatis Christi» (o sacramento do Natal de Cristo). Este padre da Igreja realça que o valor salvífico da celebração do Natal tem uma orientação pascal, dado que não é independente da Páscoa, o mais solene dos mistérios cristãos. Porque a Pascoa é o seu ponto de partida, o sacramento do Natal de Cristo renova os primórdios da salvação(3). De facto, para S. Leão Magno o mistério de Natal traz ao mundo a salvação, ou seja, o Natal já é o inicio do «sacramentum-mysterium paschale»; o cerne e centro do mistério da salvação que culmina na paixão, morte e ressurreição de Cristo. A propósito de Natal São Leão Magno exclama: «O Filho de Deus... uniu-se a nós e vinculou-nos a si de tal modo que a humilhação de Deus até à condição humana se tornasse uma elevação do homem até às alturas de Deus»(4). De facto, a Encarnação de Deus é a revelação do mistério de Deus, como fonte para levar o homem a participar na vida divina. São Leão Magno explica-nos novamente a essência da celebração do mistério do Natal na vida cristã actual: «As palavras do Evangelho e dos Profetas... inflamam o nosso espírito e ensinam-nos a compreender a Natividade do Senhor, este mistério do Verbo que se fez carne, não tanto como uma recordação de um acontecimento passado, mas sobretudo como um facto que se realiza sob os nossos olhos... é como se, na solenidade hodierna, ainda se proclamasse: “Anuncio-vos uma grande alegria, que será para todo o povo: hoje, na cidade de David, nasceu para vós um Salvador, que é Cristo Senhor”»(5) E acrescenta: «Reconhece, cristão, a tua dignidade e, tendo-te tornado participe da natureza divina, presta atenção a não recair, com uma conduta indigna, de tal grandeza na baixeza primitiva»(6)

Nestes últimos anos, com o progresso fulminante da globalização, o desenvolvimento da ciência tecnológica e a difusão rápida da telecomunicação, o termo “Natal” foi alterado no seu sentido verdadeiro na linguagem comunicativa da sociedade actual. Natal foi-se secularizando cada vez: é hoje o folclórico Pai- Natal, a árvore nórdica, são as luminárias, o fogo-de-artifício, consumismo desenfreado, a troca de presentes, os reencontros familiares… Contudo-como em-ressonâncias há júbilo, há festa, ecoam por toda a parte maravilhosos cânticos natalícios, de forma geralmente poética e ingénua, que transforma o nascimento de Cristo num ambiente de maravilhas e cheios de encanto, mas, sem grande motivação religiosa.

O sentido mais profundo é o nascimento do Filho de Deus, que Encarnou no seio da Virgem Maria feito homem como nós. O verdadeiro significado de Natal prende-se com o nascimento de Cristo, que veio ao mundo com o único propósito: o de remir os nossos pecados através da Sua própria morte, a fim de resgatar o homem e o mundo. Como dizia o Papa Bento XVI: «o Senhor compendiou a sua Palavra, abreviou-a (…) O mesmo Filho é a Palavra, o Logos; a Palavra eterna fez-se pequena - tão pequena a ponto de caber numa manjedoura. Fez-se menino, para que a Palavra possa ser compreendida por nós»(7). Portanto, Natal requer simplicidade e abertura para acolher “o Menino de Belém”, que no inicio criou todas as coisas e nos últimos tempos assumiu a nossa natureza humana, como está no Evangelho de S. João 1, 14: «Verbum caro factum est» (o Verbo fez-Se carne), enquanto, Tertuliano no século III, afirmava: «Caro salutis est cardo», «a carne é o fulcro da salvação»(8)

A Igreja considera o mistério do Natal como uma renovação do mistério pascal. Aqui reside o centro da vida litúrgica destes dois tempos fortes «depois da celebração anual do mistério pascal, nada na Igreja é mais venerável do que a celebração do Natal do Senhor e das suas primeiras manifestações: é o que faz no Tempo do Natal»(9). No entanto, a celebração anual do nascimento de Cristo é a participação no mysterium do mesmo Senhor que se fez alimento e bebida dos fiéis no sacramentum da salvação. Assim, a liturgia é a expressão da fé, dado que a celebração litúrgica do Natal ensina a Encarnação(10), do Filho de Deus feito homem, Aquele que assumiu toda a realidade humana excepto o pecado. Do mesmo modo, a Oração Colecta da Missa do dia de Natal exprime uma teologia simples, mas cheia de sentido e servindo profundamente como elo da ligação entre os mistérios da criação, da Pascoa e do Natal: «Senhor nosso Deus, que de modo admirável criastes o homem e de modo ainda mais admirável o renovastes, fazei que possamos participar na vida divina do vosso Filho que se dignou assumir a nossa natureza humana»(11). E é o mesmo hino de louvor na primeira antífona das Primeiras Vésperas da oitava do Natal do Senhor (1 de Janeiro): «Oh admirável mistério! O criador do género humano, tomando corpo e alma, dignou-Se nascer de uma Virgem; e, feito homem, tornou-se participantes da sua divindade»(12). É o mistério que os padres da Igreja exprimiram por estas outras palavras: «Deus fez-Se homem, para que o homem se tornasse Deus».

Natal de Grecio

Ao celebrarmos o Natal, quase em cada canto ou esquina de rua encontramos um presépio. Muita perguntas a fazer: Quem inventou o presépio? Que tem função um estábulo dentro de uma igreja? Que lição podemos tirar? Situemo-nos no século XIII para dar resposta a estas questões. Encontramos aqui a figura ilustre Francisco de Assis. O “Alter Christus” tinha mais profunda veneração pelo Natal do Senhor do que por qualquer outra solenidade. Dizia ele: «depois que o Senhor nasceu para nós, devemos assegurar a salvação»(13). Esta é a intuição profunda de Francisco acerca de Natal.

Foi introduzido por Francisco de Assis no século XIII. O “Poverello” influenciou a iconografia da natividade quando, em Greccio, em 1223, celebrou o Natal(14) com um presépio animado com a presença de burro e o boi. Giotto quem primeiro pintou a natividade à maneira franciscana. Foi portanto, sob a influência franciscana que, desde Greccio em 1223, se difundiu pelos quatro cantos do mundo, o costume de construir o presépio na época de Natal. Segundo a tradição, o primeiro a pensar, a construir e a ornamentar um presépio de Natal com as suas personagens e o boi, o jumento e as ovelhas, foi S. Francisco de Assis. Esse grande amigo da natureza e dos animais instalou um presépio numa igreja, e os fiéis acharam a ideia tão bela e sugestiva, que a adoptaram. Mais tarde, na Idade Média, começou a fazer-se a representação dos grandes Mistérios, espectáculos realizados nas próprias igrejas. E então eram personagens vivas a representarem a Sagrada Família nos acontecimentos do nascimento de Jesus. Não tardou que todas as igrejas fizessem o seu presépio de Natal e rivalizassem entre si no sentido de exibirem os figurantes mais luxuosamente vestidos. Mas isso já não era conforme com o espírito de pobreza da Sagrada Família nem do humilde santo de Assis(15). Mas, isto não significa que em toda a história do cristianismo não tivesse havido nenhuma representação da natividade ou o mistério da incarnação de Deus em Belém. Na basílica de Santa Maria Maior em Roma existia desde o século IV um oratório da Natividade representando o Natal, ou a gruta da Natividade em Belém. A intuição de Francisco que o levou a construir o presépio do Senhor, surgiu após a sua viagem a Terra Santa, em 1220. Podemos concluir que foi depois de visitar a gruta da Natividade de Belém, que, surgiu em Francisco o inflamável desejo de construir o presépio para celebrar de forma visível e impressionante a humildade do nascimento do Filho de Deus, no mistério da Encarnação. A suprema aspiração de Francisco, o seu mais vivo desejo e mais elevado propósito era exprimir a morte de Cristo na cruz e, do mesmo modo, o seu nascimento encena-se a noite de Belém. Na biografia do santo, estes dois sentimentos estão interligados: «dois sentimentos de Cristo empolgavam-no de tal maneira que o não deixavam pensar em mais nada: a humildade expressa no nascimento e o amor manifestado na Paixão»

O episódio de Greccio surgiu da seguinte maneira: «Um quinze dias antes do Natal, Francisco mandou chamar, um senhor da aldeia de Greccio, no vale de Rieti, e disse-lhe: “Se queres que celebremos em Greccio o próximo Natal do Senhor, vai imediatamente e começa já a prepará-lo como vou dizer. É meu desejo celebrar a memória do Menino que nasceu em Belém de modo a poder contemplar com os meus próprios olhos o desconforto que então padeceu e o modo como foi reclinado no feno da manjedoura, entre o boi e o jumento”»(16). Foi assim com o presépio que, o “alter Christus”, nos legou a representação viva do mistério da Encarnação do Filho de Deus na história da Igreja.

Na véspera desse dia, 24 de Dezembro de 1223, Francisco desempenhou a função de diácono17, com a voz sonora entoou o santo Evangelho. E surpreendeu ainda mais os povos dos arredores de Greccio com o seu simples e tocante sermão de Natal. Diz o seu biógrafo Tómas de Celano:
«A sua voz potente e doce, límpida, bem timbrada, convida os presentes às mais altas alegrias. Pregando ao povo, tem palavras doces como o mel para evocar o nascimento do Rei pobre e a pequena cidade de Belém. Por vezes, ao mencionar a Jesus Cristo, abrasado de amor, chama-lhe o “menino de Belém”, e, ao dizer “Belém” era como se imitasse o balir duma ovelha e deixasse extravasar da boca toda a maviosidade da voz e toda a ternura do coração. Quando lhe chamava “menino de Belém” ou “Jesus” passava a língua pelos lábios, como para saborear a doçura de tão abençoados nomes»(18). O Natal de Greccio foi portanto um acontecimento irrepetível e único na vida da Igreja. Aí, Francisco celebrou de uma forma concreta a Encarnação do Logos, o “Verbo fez-Se Carne”.

Na Carta a Todos os Fiéis, cheios de encanto acerca da Encarnação do Logos, Francisco dizia: «O Pai altíssimo, pelo seu arcanjo S. Gabriel, anunciou à santa e gloriosa Virgem Maria, que esse Verbo do mesmo Pai, tão digno, tão santo e glorioso, ia descer do céu, a tomar a carne verdadeira da nossa humana fragilidade em suas entranhas»(19). E prosseguiu: «Sendo Ele mais rico do que tudo, quis, no entanto, com sua mãe bem-aventurada, escolher a vida de pobreza»(20). O que atrai mais a atenção de Francisco é o Menino de Belém. Descreve-o de seguinte modo: «Porque o santíssimo Pai do céu, nosso Rei desde toda a eternidade, mandou lá do alto seu Filho dilecto, e Ele nasceu da bem-aventurada Virgem Santa Maria. (…) Porque nos foi dado o santíssimo e dilecto Menino, e por nós nasceu durante uma viagem e foi deitado num presépio, por não haver lugar para ele na estalagem»(21). Para Francisco, o que comove e fascina mais na Encarnação do Logos é a pobreza de Cristo, a simplicidade, a santa humildade no presépio de Belém e, mais do que tudo, o amor de Deus pelo homem. Por isso, Greccio transformou-se em nova Belém.

Que mensagem Francisco nos quer transmitir com o presépio de Greccio? Que cada presépio deve ser hoje para todos nós um templo consagrado ao Senhor. Como as gerações de então, nos dias de hoje, o menino Jesus está a dormir em muitos corações, sobretudo nos cristãos que se dizem “crentes” mas não praticantes. Por isso, este santo Natal a voz de Francisco ressoa desde Greccio aos quatro cantos do mundo: “oh vós que estais a dormir, acordai!”, porque nesse dia Deus se fez Menino e foi amamentado como qualquer criança…!

Que este Natal seja um reflexo do que já tinha acontecido há XXI séculos em Belém e que Francisco contemplou em Greccio há VIII séculos.
Deixemo-nos transformar pelo Logos, Verbo feito carne, a fim de que, saibamos a ama-lo e acolhe-lo no nosso coração, na nossa vida, nos nossos lares e nos ambientes de trabalho. Este, o grande milagre de Natal: o Logos feito carne; assumiu toda a nossa natureza humana, ao ponto de Lhe dar o nome Jesus; da palavra hebraica Jeschua, isto é, Javé ou Salvador. Votos de feliz Natal e um Ano Novo cheio de paz e prosperidade!


Notas:
1. FERREIRA José, «os mistérios de Cristo na liturgia», Gráfica de Coimbra, Lda, pag. 178
2. ESTEVES José F. Caldas e José M. G. CORDEIRO, «Liturgia da Igreja», Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, pag. 226
3. S. LEÃO MAGNO, Sermão sobre o Natal do Senhor, 27, 1
4. Ibidem, 27, 2
5. Ibidem, 29, 1
6. S. LEÃO MAGNO, Sermão 1 sobre o Natal do Senhor, 3
7. BENTO XVI, Homilia na solenidade do Natal do Senhor (24 de Dezembro de 2006): Acta Apostolicae Sedis (AAS) 99 (2007), 12.
8. TERTULIANO, De carnis resurrectione, 8, 3: PL 2, 806
9. SAGRADA CONGREGAÇÃO DOS RITOS – CONSILIUM, «Normas gerais sobre o Ano Litúrgico e o calendário 32», in EDREL, 134
10. A. COELHO, «Curso de liturgia romana, liturgia fundamental, liturgia laudativa, liturgia sacramental», Edições Ora & Labora, Mosteiro de Singeverga, Negrelos, 1950, pag. 164, apud José F. C. Esteves e José M. G. Cordeiro, «Liturgia da Igreja», Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, pag. 227
11. MISSAL ROMANO, Solenidade do Natal, Oração colecta da Missa do dia.
12. Antífona das Primeiras Vésperas da oitava do dia de Natal do Senhor (1 de Janeiro)
13. ESPELHO DA PERFEIÇÃO, Cap. CXIV, in S. Francisco de Assis, Escritos, Biografias, Documentos, Editorial Franciscana Braga – 1982, pag. 1007
14. Portanto, na noite de 25 de Dezembro de 1223. Como nota São Boaventura (LM X, 7), Francisco tinha-se munido da autorização papal. Não era então muito frequente a celebração da Eucaristia em “altar portátil”.
15. GUITTON Gérard, «Descobrir S. Francisco», Editorial Franciscana Braga, Braga 2004, pag. 71-72
16. TÓMAS DE CELANO, «Vida Primeira de Francisco», in S. Francisco de Assis, Escritos, Biografias, Documentos, Editorial Franciscana Braga – 1982, pag. 272-273.
17. Francisco era diácono. Diz Bartolomeu de Pisa que Francisco não quis receber o sacerdócio por humildade. São Bento, que era diácono, exerceu grande influência sobre o Poverello. Cf. Bihl em AFH 17 (1924) pag. 445-447
18. TÓMAS DE CELANO, «Vida Primeira de Francisco», in S. Francisco de Assis, Escritos, Biografias, Documentos, Editorial Franciscana Braga – 1982, pag. 272-273.
19. FRANCISCO DE ASSIS, «Segunda Carta a Todos os Fiéis (2CF), no. 4», in Escritos São Francisco e Santa Clara de Assis, Editorial Franciscana Braga – 2001, pag. 81
20. Ibidem, no. 5
21. FRANCISCO DE ASSIS, «Ofício da Paixão do Senhor (OP), no. 15», in Escritos São Francisco e Santa Clara de Assis, Editorial Franciscana Braga – 2001, pag. 61

 
© 2007 Template feito por Templates para Você