sexta-feira, 5 de abril de 2013

Uma hermenêutica de “Porta Fidei”


          Como é sabido na actualidade existe uma crise profunda da fé. Abala o cristianismo, e é profunda, pois afecta toda a existência humana. A crise actual do homem é toda ela uma crise em profundidade, e só em profundidade se pode solucionar: a crise da fé. A descrença situa-se sobretudo nos países do chamado Primeiro Mundo, especificamente a Europa, que é considerada como “Irmã mais velha na fé”, na expressão de João Paulo II e “impulsionadora” do cristianismo. No âmbito da fé religiosa, verifica-se uma diminuição dos crentes e um aumento dos descrentes. No interior do cristianismo assiste-se assim, com frequência, a uma igreja de «atonia», sem grande vitalidade nem criatividade e sobretudo sem credibilidade nem atractividade[1]. Senhor, eu creio mas aumenta a minha fé! É um pedido feito pelos Apóstolos a Jesus Cristo, que é Porta fidei (Porta da Fé). Será que o homem pós-moderno ainda é fiel à fé que professou no baptismo? Ou será que o homem contemporâneo ainda tem necessidade de ir buscar Algo ou Alguém como fundamento último em que possa acreditar, e simultaneamente, dele esperar a salvação? Ou será que o homem de hoje se deixa conduzir pela conduta de irreligiosidade, isto é, a ausência de Deus nas práticas religiosas? Na actualidade do mundo ocidental verifica-se um «eclipse de Deus» (M. Buber). O cardeal Ratzinger começava o seu famoso livro Introdução ao Cristianismo dizendo, que o problema dos cristãos era não saberem o conteúdo e o significado da fé cristã. Dentro do catolicismo encontram-se cristãos sem Igreja, cristãos em autogestão, religião em arranjo pessoal ou de composição à lista “religiosidade flutuante” (na realidade dos timorenses temos a conotação: Cristão KTP ou NaPas), e bricolage religiosos, na linguagem de François Champion[2].

            Naturalmente, o homem aparece no mundo como “animal religiosus”. O homem vê-se no mundo como um caminhante, sente necessidade de saber de onde vem e para onde vai. E, em ligação com isso, sente necessidade de saber o que está no fundo do mistério que envolve o mundo e a vida, afirmando a existência de Algo ou Alguém que, em última instância, dê sentido a todas as coisas[3]. Talvez como diria Daniel Innerarity: «o Problema não é se as pessoas continuarão ou não a crer em Deus, mas sim qual é o lugar dessa crença no mundo social. O que acabou não foi a religião: foi a organização reli­giosa da sociedade. Desvaneceu-se aquilo que sustentava a fé religiosa a partir do exterior, aquilo que a inseria no círculo do plausível e lhe dava uma espécie de objectividade sociológica. Estamos a entrar na época de uma reli­gião libertada das suas conotações políticas e sociais, mais livre e mais pessoal. Talvez agora se possa conceber a expe­riência e a prática religiosas de outra maneira, mais concorde com a realidade democrática e até com a natureza da religião». A religião não se reduz a um credo: repercute-se em toda vida. Orienta e dá sentido a toda a existência humana.

            Ao celebrarmos os Cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II e o Vigésimo aniversário da publicação do Catecismo da Igreja Católica, sua Santidade Bento XVI proclama este como Ano da Fé. Recorda também o sínodo dos bispos sobre a Nova Evangelização, sob o tema: a Nova Evangelização para a transmissão da fé cristã; e o ano da fé de 1967 proclamado por Paulo VI. Neste ano da fé somos conduzidos pela Carta Apostólica Porta Fidei a redescobrir a beleza da fé que professamos no baptismo. É um autêntico itinerário de fé. Portanto, esta carta resume-se nesta tríplice dimensão da fé.

1Assimilar os conteúdos da fé

            A palavra fé vem de “fides”, confiança e fidelidade. A fé leva a algo fora de nós mesmo: alteridade, relação com o outro, fora de si mesmo. Em hebraico, a fé sublinha mais a firmeza; crer significa estar firme, seguro (aman), confiar (batah), refugiar-se (hasad). Em grego, vinca-se mais a persuasão; crer é obedecer (hypakouein), edificar (oikodomein), além de conceito mais generalizado que é confiar (pisteuein)[4]. A fé não é saber teórico. A fé, é antes de tudo, a atitude de uma pessoa que decide confiar no Outro, apesar de tudo e opondo-se a tudo, até pôr em jogo, neste compromisso, o próprio sentido da sua existência[5]. O Santo Padre lembra-nos que a Porta Fidei: « introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja, está sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma. Atravessar esta porta implica embrenhar-se num caminho que dura a vida inteira[6]». A fé é adesão a Cristo e implica conversão: “abraçaram a fé e se converteram ao Senhor” (Act 11, 21). O “homem peregrino”, o cristão vive no mundo amparado pela fé, e tem por meta a transcendente. Escreve Bento XVI: «o ano da fé convida-nos a uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo. No mistério da sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos pecados [7]». Pela fé, o crente torna-se participante da relação dialógica de Jesus com o Pai; e como Ele vive não a partir de si mesmo, mas do outro de si (isto é, do Pai que lhe é origem) também o cristão não fundamenta sua existência em si mesmo, mas na pessoa de Jesus Cristo[8], revelação plena do Pai. A meta da revelação é conduzir à obediência da fé e centrar tudo em Cristo, e para que nos entreguemos ao louvor da sua glória que é a salvação do homem.

            O acesso ao mistério dá-se pela fé que reconhece o plano de salvação na morte e ressurreição de Cristo. O mistério é apresentado aos homens conscientes da exigência e abertos ao dom. Mas esta fé não se dá só pela palavra exterior, é necessária a iluminação interior ou a graça de Deus. O verdadeiro significado da fé - diria Tomás Merton – é a rejeição de tudo o que não é de Cristo, de modo a que toda a vida, toda a verdade, toda a esperança e toda a realidade possa ser vista e encontrada em Cristo. A fé não é a penas uma reacção subjectiva e psicológica mas um poder dinâmico e sobrenatural que molda toda a existência da vida humana[9]. A fé em Deus não pode deixar de influenciar as actividades humanas. Segundo a Porta Fidei: «na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afectos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A fé, que actua pelo amor torna-se um critério novo de entendimento e de acção, que muda toda a vida da criatura humana[10]. Esta fé é a experiência de ser amado por Jesus Cristo de modo completamente pessoal.

            Sem dúvida O quarto Evangelho foi que melhor pôs em realce esta dimensão específica pessoal do conhecimento da fé; conhecer-te a Ti, único Deus verdadeiro e ao teu enviado Jesus Cristo (cf. Jo. 17, 3). É esta a dimensão eterna da vida. A fé como acto implica estar no mundo, sujeito às leis do agir com os outros e como acto de fé transcender esta existência assumindo-a noutra interpretação da realidade: mundo de Deus face à lógica dos homens (J. F. Malherbe). A fé vive dum “movimento essencial de transgressão, dum excesso”, que se inscreve ao mesmo tempo no mais profundo do mundo, do corpo e da pessoa (Pierre Gisel), um fora-de-lei cultural, “um trabalho a descoberto (a fazer) sem a protecção da ideologia da instituição sob a forma de digressão (forme voyageuse)” (Michel de Certeau); como “peregrinos que num êxodo sempre novo procuram a pátria eterna da Verdade” (K. Rahner). Crer é um modo de ser onde a compreensão da fé é inseparável da compreensão de si” (J. Geffré): fé e a compreensão (de si) se implicam mutuamente[11], na existência numa convergência entre o dinamismo próprio da fé (fides quaerens intellectum) e as operações da inteligência (intellectus quaerens fidem (G. P. Widmer). O “intellectus fidei”, que pode ser assimilado a um “compreender hermenêutico”, assume o pensar numa correlação entre as exigências da problemática racional e as exigências da reflexão cristã (J. Ladriere). Crer é atitude do homem colocado perante a questão do sentido, da verdade, como peregrinação permanente no mundo. Crer é confiar em Alguém, é seguir o chamamento do Desconhecido que convida, confiar a própria vida nas mãos de um outro, para que ele seja o único, verdadeiro e santo (Bruno Forte). Pela fé o homem responde a um Deus Ludens no ritmo de dar, receber, voltar a dar, como notou bem na expressão de Hugo Rahner: “Se o homem é um homo ludens que transfigura o mundo, é porque Deus é um Deus ludens que possibilita o mundo”; por isso, “Porque Deus é um Deus ludens, deve o homem ser um homo ludens”. Nesta dinâmica a fé faz o homem esperar de Deus que torna possível tudo o que crê. E crer é ter confiança no poder de Deus, é deixa-lo agir, deixa-lo ser Deus.

            O “estar no mundo”, mesmo na fé cristã, tem no pensar o ponto de apoio (M. Heiddeger). E neste estar da fé no mundo, o Espírito “introduz na dimensão própria do espaço de Deus (que) ele é (competindo à teologia) conservar a memória viva do prazer de pensar e de viver que convida a habitar o espaço potencial de Deus”, a compreender em referência a uma ontologia do jogo (J. Greish), da ressonância. Diria Santo Anselmo: credo ut intelligam (creio para compreender) é uma afirmação muito mais cristã e humana, do que a afirmação de Tertuliano: credo quia impossible, (creio, nisto porque é impossível). Não só a fé vai muito mais além, como este mais além não é qualquer verdade teórica referida ao absoluto; não é outra coisa senão o Outro em Pessoa. Foi o que Tomás de Aquino indicou perfeitamente numa fórmula célebre, ao dizer da fé que ela não pára nos enunciados, mas só na própria realidade, isto é, naquele que João nomeia, não como a Verdade, mas o Verdadeiro[12]. Ser cristão não é uma questão de teorias ou de leis. Quem nos salva é a pessoa viva de Cristo acolhido como Filho de Deus e Salvador nosso. É na relação pessoal, viva, dinâmica com Jesus Cristo que se aprofunda o conhecimento íntimo que constitui a nossa fé: «se não nos enamorarmos de Cristo, não teremos interesse algum como Cristãos» (J. Ratzinger)

            O Concílio Vaticano II diz explicitamente: O homem entrega-se todo a Deus livremente, prestando o ‘pleno assentimento da inteligência e da vontade a Deus que revela’ (DV 5). O desejo de Bento XVI é convidar todos os cristãos a professar a fé na trindade e deixa-nos plasmar pela graça transformadora de Deus. Bem o exprime Bento XVI: «Professar a fé na Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – equivale a crer num só Deus que é Amor: o Pai, que na plenitude dos tempos enviou seu Filho para a nossa salvação; Jesus Cristo, que redimiu o mundo no mistério da sua morte e ressurreição; o Espírito Santo, que guia a Igreja através dos séculos enquanto aguarda o regresso glorioso do Senhor[13]».

2. Celebrar a fé

            Celebrar a fé é um momento fundamental na vida de um cristão. A construção de uma fé madura faz-se também dificuldades, sofrimentos e opções de fundo que exigem uma conversão profunda da mente e do coração. O caminho da maturidade implica a busca de uma educação para viver a fé cristã na sua totalidade una e indivisível, como fé professada, celebrada e vivida. Cristo torna-se o centro de toda a celebração da fé. É nesta referência a Jesus que se constitui a minha fé, porque é nela que Deus vem ao homem, que o homem encontra Deus. É o lugar do encontro, é o próprio encontro, é a mediação, é o mediador; depois de ter falado a nossos pais pelos profetas Deus falou por seu Filho (cf. Heb 1, 1). Esta mediação é integralmente humana; implica três consequências: 1. Só, através de Jesus, se estabelece a relação de fé com o Outro; 2. Segue-se que a adesão de fé se inscreve não no quadro de um saber teórico, mas de um reconhecimento no seio de uma relação interpessoal; 3. Jesus não escapa à condição humana, Deus encontra-nos nele sob um modo humano; isto é, limitado, finito[14]. É por isso que a resposta da fé, dada pelo homem a Deus, deve ser voluntária. Por conseguinte, ninguém deve se constrangido a abraçar a fé contra vontade. Efectivamente, por própria natureza, o acto de fé tem característica de voluntário[15]. Por isso, o homem deverá alimentar e revigorar a fé, procurar viver melhor a relação pessoal com Deus e conduzir a experiência da beleza da fé, à comunhão fraterna, ao compromisso maduro da vida cristã na Igreja e no mundo.

            Celebrar a fé envolve a totalidade do nosso ser. Ora, a fé não se reduz a um conjunto de ideias sobre Jesus Cristo; enquanto relação que é, exige o envolvimento de todas as nossas capacidades comunicativas. Esta comunicação com Deus através da fé, é certamente fundamental: «sem a fé é impossível agradar-lhe; e quem se aproxima de Deus tem de acreditar que Ele existe e recompensa aqueles que o procuram» (cf. Heb 11, 6). Nesta certeza de que Ele nos recompensa e agrada, Bento XVI exorta aos cristãos para que este Ano seja uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é «a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força[16]». Nesta celebração da fé Deus interpela o homem, comunica a Boa Nova da salvação e dá-se o encontro entre Deus e o homem pela fé. Há uma relação de amizade de comunhão. Mas, este encontro na fé tem particularidades: é sempre Deus que tem a iniciativa; há que ter em conta a gravidade da opção da fé; a profundidade da comunhão entre Deus e o homem é a característica deste encontro. Como notou com muita lucidez Bento XVI: «a necessidade de redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a alegria e o renovado entusiasmo do encontro com Cristo[17]». A fé verdadeira está centrada na relação pessoal com Cristo. Eis a originalidade da fé cristã: ela encontra e exprime a sua originalidade na relação com Jesus Cristo. Ele é o “coração” da própria fé, “o autor e aperfeiçoador da nossa fé”. É o fundamento seguro, o conteúdo essencial e a meta viva e pessoal do acto da fé. Esta fé dá-nos uma profunda confiança e uma imensa alegria da vida.

            Pela fé, reconhecemos na acção divina por Jesus Cristo a revelação do sentido último da nossa existência, reconhecemos que o que se passou nele também diz respeito ao nosso destino de homens. Como afirma Bento XVI: «o homem contemporâneo pode sentir de novo a necessidade de ir como a samaritana ao poço, para ouvir Jesus que convida a crer n’Ele e a beber na sua fonte, donde jorra água viva[18]». O encontro com Cristo como pessoa viva que sacia a sede do coração humano. Tal perspectiva remete para Duns Escoto, que definiu o homem como caminheiro em busca da fonte onde possa saciar a sede dos desejos mais profundo. No ser humano os desejos radicam na vontade e na razão, impelindo-o a buscar até que encontre o que busca. Mas o apetite humano só poderá ser satisfeito pelo bem infinito (Ord. III, d. 26, q. un., n. 22). Só com os olhos postos em Cristo, o cristão aprende a reconhecer a presença e a acção de Deus que o busca, que vem ao seu encontro e o chama a nova comunhão. Jesus Cristo é o tesouro único que a Igreja tem para nos oferecer.

            O homem, com a fé, volta-se para Deus e se dá a ele na amizade. Pela fé, Cristo torna-se o “poder de Deus” nas nossas vidas. Só pela fé podemos aceitar verdadeiramente Cristo e a sua Igreja como nossa salvação. Sem fé, é-se cristão apenas de nome[19]. A autêntica fé cristã é ao mesmo tempo dom e consentimento, com o seu peculiar estilo de vida, diz Bento XVI na Porta Fidei: «a fé cresce quando é vivida como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria. A fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite oferecer um testemunho que é capaz de gerar: de facto, abre o coração e a mente dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a aderir à sua Palavra a fim de se tornarem seus discípulos»[20]. Esta experiência extraordinário da fé, que molda toda a existência humana: «vivo a vida presente na fé do Filho de Deus que me amou e se entregou por mim» (Gal. 2:20). É esta experiência de ter sido “enamorado” por Cristo, que dá impulso à nossa vida.
            A experiencia da fé torna-se, neste momento, uma experiencia do contacto, da relação pessoal do homem com Deus, que se manifesta como amor. O encontro com Cristo torna-se um paradigma do caminho espiritual do cristão, um itinerário de conversão, de fé e de amor a Cristo, que começa pela experiência pessoal do encontro. A experiência do encontro marca um início que precisa de ser continuado, é um desabrochar que requer crescimento até à maturidade.

            A fé faz com que saboreemos, como que de antemão, a alegria e a luz da visão beatífica, termo da nossa caminhada nesta Terra. Então, veremos Deus “face a face”, tal como Ele é. A fé, portanto, é já o princípio da vida eterna[21]. Como tinha dito S. Basílio no Tratado do Espírito Santo: «desde já, contemplamos as bênçãos da fé, como reflexo num espelho, é como se possuíssemos já as maravilhas que a nossa fé nos garante havermos de gozar um dia».  Que suscite em nós uma fé inquebrantável segundo o desejo de Santo Padre: «fazendo com que o “Ano da Fé” produzisse o máximo de frutos, quer por uma adesão mais profunda à Palavra de Deus, quer pela renovação da profissão de fé em muitas comunidades, quer pela confirmação da própria fé, com o testemunho de uma vida autenticamente cristã[22]». É certo que todos os dias nas celebrações litúrgicas, podemos e devemos dispor um tempo para Deus, cultivando a fé para imbuir dela a nossa vida. Pois, só através da celebração da fé que nos faça permaneceremos no coração da fé.

3. Testemunhar a fé

            A fé é resposta do homem ao testemunho dos apóstolos. A pregação do mistério revelado convida à "obediência da fé" (Rm 16,26; 2 Cor 10,5). A revelação é uma função ou decisão específica: é testemunho, que pede reacção específica: a fé. Toda a revelação é testemunho. O testemunho da fé é o critério definitivo pelo qual o homem é considerado um cristão. Testemunhar é afirmar a realidade de um facto e implica dois aspectos: comunicação de acontecimentos de que se tem conhecimento por experiência e comunicação feita em função de uma pessoa. A fé é, portanto, este processo, este movimento (conversão) para Jesus e, nele para o Pai. Recorda-nos Bento XVI: «Queremos celebrar este Ano de forma digna e fecunda. Deverá intensificar-se a reflexão sobre a fé, para ajudar todos os crentes em Cristo a tornarem mais conscientes e revigorarem a sua adesão ao Evangelho, sobretudo num momento de profunda mudança como este que a humanidade está a viver[23]». No testemunho humano, o testemunho é um apelo que convida o outro a admitir como verdadeiro com base numa palavra, ou seja, a fé, como resposta, apoia-se no testemunho, como garantia próxima da verdade. Esta fé é uma aceitação total e inabalável da pessoa de Cristo como fonte de poder salvífico e de vida nova. É o “mistério” e projecto salvador de Deus; é a vontade que Deus tem de partilhar a sua vida, a abundância da sua riqueza com a humanidade e com cada ser humano.

            A fé é resposta relativa à pregação de Jesus sobre o Reino; “O Reino de Deus está próximo; convertei-vos e acreditai...” (cf. Mc 1, 15); “pregai... quem acreditar.... será salvo...” (Mc 16, 15-16).  A fé responde ao testemunho exterior do filho e à atracção interior do pai e testemunha o espírito. Assim, Deus livre através da economia da encarnação faz conhecer a sua vida íntima e os seus desígnios eternos de salvar e conduzir todos os homens a si por Cristo. Como bem notou a Porta Fidei: «esperamos que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada e reflectir sobre o próprio acto com que se crê, é um compromisso que cada crente deve assumir[24]». A fé, se é verdadeira, passa e embebe a vida toda, compromete o nosso ser e o nosso coração, ilumina a inteligência e faz-nos pensar como Jesus Cristo. A fé é um acto pessoal: resposta livre do homem á proposta de Deus que Se revela. Mas não é um acto isolado. Ninguém acredita só, como ninguém vive só. Ninguém se deu a fé a si mesmo, como ninguém a si mesmo deu a vida. Foi de outrem que o crente recebeu a fé; a outrem a deve transmitir[25]. A fé deve preceder a gramática e os meios do conhecimento. A Palavra que é Cristo ‘habita’ literalmente a psique humana embora necessite de ser despertada pela graça”[26].

            A fé é dom do Pai: “... ninguém pode vir a mim, se isso não lhe for concedido por meu Pai” (Jo 6, 65). O ser de Jesus identifica-se com a sua obra, função “para nós”: “A pessoa de Jesus é sua doutrina e sua doutrina é Jesus mesmo. ‘Portanto, fé cristã, isto é, fé em Jesus como o Cristo, é verdadeiramente “fé pessoal”; não é a aceitação de um sistema, mas a aceitação de uma pessoa, que é a sua palavra; da palavra como pessoa e da pessoa como palavra[27]. E na palavra se revela o sentido da existência humana; Cristo pelas suas palavras diz “Palavra”, que ele é, o Logos (“a palavra”, o “sentido”, a “razão”), fundamento do universo e da pessoa[28]. O espírito testemunha e gera a fé (1 Jo 5, 6).

            Esta acção interior é o “testemunho do Espírito” (l Cor 5,6), que age interiormente para que o homem reconheça e confesse a verdade de Cristo. Como sublinha a Porta Fidei: «o professar com a boca indica que a fé implica um testemunho e um compromisso públicos. O cristão não pode jamais pensar que o crer seja um facto privado. A fé é decidir estar com o Senhor, para viver com Ele. E este «estar com Ele» introduz na compreensão das razões pelas quais se acredita[29]». É ainda ao Espírito e a seus dons que se deve atribuir o aprofundamento da revelação (DV 5). No movimento do homem para a fé, é o Espírito que abre a inteligência ao mundo do evangelho; é ainda o Espírito que, no interior da fé, desenvolve o poder de penetração da inteligência (dom da, inteligência) e dispõe a compreender, mediante as vias do amor (dom da sabedoria), infundindo-lhe uma consonância afectiva que o torna conatural ao evangelho. É por isso que os evangelhos sinópticos ecoam com as palavras de Jesus Cristo para aqueles a quem curou: “a tua fé te salvou!”.

            A fé é um dom, a pessoa de Jesus é a sua doutrina e a sua doutrina é Jesus mesmo a fé cristã é a fé em Cristo, fé pessoal, fé numa pessoa. Como atesta a Porta Fidei: «A própria profissão da fé é um acto simultaneamente pessoal e comunitário. De facto, o primeiro sujeito da fé é a Igreja. É na fé da comunidade cristã que cada um recebe o Baptismo, sinal eficaz da entrada no povo dos crentes para obter a salvação[30]». Por sua vez, diz-nos o Catecismo da Igreja Católica, «“Eu creio”: é a fé da Igreja, professada pessoalmente por cada crente, principalmente por ocasião do Baptismo. “Nós cremos”: é a fé da Igreja, confessada pelos bispos reunidos em Concílio ou, de modo mais geral, pela assembleia litúrgica dos crentes. “Eu creio”: é também a Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos ensina a dizer: “Eu creio”, “Nós cremos”[31]. É um caminho de fé que alimentamos na comunidade Cristã, com a ajuda de outros. Santo Agostinho afirma numa homilia sobre a redditio symboli: «O símbolo do santo mistério, que recebestes todos juntos e que hoje proferistes um a um, reúne as palavras sobre as quais está edificada com solidez a fé da Igreja, nossa Mãe, apoiada no alicerce seguro que é Cristo Senhor. E vós recebeste-lo e proferiste-lo, mas deveis tê-lo sempre presente na mente e no coração, deveis repeti-lo nos vossos leitos, pensar nele nas praças e não o esquecer durante as refeições; e, mesmo quando o corpo dorme, o vosso coração continue de vigília por ele (Sermão 215, 1).

            Pela estrutura da fé, os outros, que faltam, são “como os sinais da presença de Deus”, e a “ausência (dos outros) é um momento da verdade”, que “revela a diferença dos outros e de Deus” ou a pobreza que “significa, quer o desejo que... liga aos outros quer a diferença que...separa deles. Por isso, o acesso à verdade de ser ele mesmo, que se dá na comunhão de “não sem os outros”, é “a coragem de ser diferente tornando-se, por isso mesmo, seu devedor”, pois, o que sou de mais verdadeiro está entre nós, ao mesmo tempo, abertura e fenda, ela arranca-nos uma irredutível, exigente e modesta confissão de fé: “Sem ti, não posso mais viver. Não te possuo mas a tenho-me a ti. Tu me permaneces outro e tu és-me necessário, porque que o que de mais verdadeiro sou está entre nós” (Michel Certeau).

            Pela fé: Maria acolheu a palavra do Anjo e acreditou no anúncio de que seria Mãe de Deus na obediência da sua dedicação. Os Apóstolos deixaram tudo para seguir o Mestre. Acreditaram nas palavras com que Ele anunciava o Reino de Deus presente e realizado na sua Pessoa. Os discípulos formaram a primeira comunidade reunida à volta do ensino dos Apóstolos, na oração, na celebração da Eucaristia, pondo em comum aquilo que possuíam para acudir às necessidades dos irmãos. Os mártires deram a sua vida para testemunhar a verdade do Evangelho que os transformara, tornando-os capazes de chegar até ao dom maior do amor com o perdão dos seus próprios perseguidores. Homens e mulheres de todas as idades, cujo nome está escrito no Livro da vida, confessaram a beleza de seguir o Senhor Jesus nos lugares onde eram chamados a dar testemunho do seu ser cristão: na família, na profissão, na vida pública, no exercício dos carismas e ministérios a que foram chamados[32]. O homem de hoje não tem a fé de Abraão. A fé é pôr-se a caminho e caminhar como Abraão: Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai, e vai para a terra que Eu te indicar. Farei de ti um grande povo, … e serás uma fonte de bênçãos”(Gen 12, 1-3),  “pai de inúmeros povos (por que) Eu serei o teu Deus e da tua descendência” (Gen 15, 17-22; 17, 3. 7). A fé não é discorrer, é êxodo, de encontro em encontro, sempre mais além até à face de Deus. E este êxodo jamais terá termo, pois o horizonte é infinito[33]. A eternidade, dizia Gregório de Nisa, é ir de começo em começo através de começos que não tem fim. Este é o destino do homem como homo viator em contínua busca de Deus. Gabriel Marcel dizia que o cristão é um homo viator, um homem que marcha no seguimento de Cristo. É homo hospes, um hóspede em todos os sentidos. É um peregrino e transeunte no mundo. Numa das suas e geniais intuições, Max Scheler definiu o homem como um “buscador de Deus”. Tal definição enquadra perfeitamente com Francisco de Assis. Durante toda a vida o Pobrezinho foi um incansável buscador de Deus.

            Por isso, ao longo deste ano fixamos o nosso olhar em Jesus Cristo «autor e consumador da fé» (Heb 12, 2) e a lição que a Porta Fidei nos apresenta. Este desejo ardente do Santo Padre que vai conduzir a vida da Igreja na sua peregrinação deste Ano  que suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é «a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força». Simultaneamente esperamos que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade[34].

            Estou consciente de que estas três pequeninas imagens sejam uma guia que nos conduz ao longo deste tempo: a Marca, a Seta e o Anel[35].
            A primeira imagem é a da marca: a linguagem da fé como a marca dos passos: ele passou por aqui, mas já cá não está. Eis a sua pegada, ainda marcada na nossa terra. Se o queremos conhecer pessoalmente e descobri-lo, ponhamos os pés na marca dos seus passos e caminhemos em seu seguimento.
            A segunda imagem é a da seta: a linguagem da fé é como seta da estrada que indica, em todas as circunstâncias, o nome da cidade e a sua direcção. Não é o inventário de um conteúdo: é uma orientação para se seguir. Esta indicação viria, no entanto, a despropósito e não falaria ao nosso coração, se não exibisse, ao menos, a menção original da caridade
            A terceira imagem é, a do anel duplo: a linguagem da fé é como um anel duplo forjado em forma de oito. Partimo-lo em dois e cada um de dois contratantes guarda metade dele como garantia de fidelidade e como sinal de identificação. Cada uma das metades do anel, tornado um anel simples, traz em si a marca da fractura que o declara incompleto. Se queremos encontrar o Outro para reconstruir a unidade primeira do símbolo é necessário metermo-nos ao caminho.

            O Ano da Fé tem em vista transmitir uma experiência de fé, e só depois, como consequência, leva a aprofundar o conhecimento do mistério em que se acredita. Logo, não faz sentido nenhum que o ano da fé se limite a ter de decorar umas coisas... Somos convidados para uma experiência de fé e aprofundar o conhecimento do mistério de Jesus Cristo. Um ano para reflectir sobre a fé, para pedir a fé, para evangelizar a fé no coração de muitos que sofrem uma crise profunda da fé; para procurar ter uma fé mais adulta, amadurecida, mais culta. Uma fé mais evangélica, que impregne toda a vida e nos ajude a viver com maior intensidade a adesão a Deus, à sua Palavra, ao seu Amor. Por tanto, o ano da fé, obriga-nos a ser sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo de hoje, devido à profunda crise de fé que atinge muita gente.

            Que saibamos nós, neste Ano de Fé, contemplar Deus através do Rosto de Cristo como Clara de Assis adverte à Inês de Praga: «fixa o teu olhar no Espelho da eternidade, deixa a tua alma banhar-se no esplendor da glória e une o teu coração Àquele que é encarnação da essência divina, para que contemplando-O, te transformes inteiramente na imagem da sua divindade[36]» e ousamos pedir uma Fé verdadeira como fez Francisco de Assis na Igreja de São Damião, rezando[37]:
Ó glorioso Deus altíssimo,
Ilumina as treva do meu coração,
Concede-me uma fé verdadeira,
Uma esperança firme e um amor perfeito.
Mostra-me Senhor,
O recto sentido e conhecimento,
a fim de que possa cumprir o sagrado encargo,
que na verdade acabas de dar-me. Amem!

By: Afmend Sarmento, OFM

Bibliografia:
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BARBOSA Adérito Gomes, Cristãos com fé, edições Paulinas, Prior Velho 2012
BENTO XVI, Carta Apost. Porta da Fé, 6ª edição, Edições Paulinas, Junho 2012
COUTINHO Jorge, Caminhos da razão no horizonte de Deus, Edições Tenacitas, 2010
DUQUE João, Homo Credens. Para uma Teologia da Fé, Universidade Católica Editora, Lisboa 2002.
FRANCISCO DE ASSIS São, Escritos são Francisco e Santa Clara de Assis, Ed. Franciscana Braga – 2001
IGREJA CATÓLICA, Catecismos da Igreja Católica, Gráfica de Coimbra
MERTON Tomas, Vida e Santidade, Editorial Franciscana, Braga 2007
RATZINGER J, Introdução ao Cristianismo, Herder, S. Paulo 1970
STEINER Georg, As Lições dos Mestres, Gradiva, Lisboa 2005




[1] COUTINHO Jorge, Caminhos da razão no horizonte de Deus, Edições Tenacitas, 2010, p. 36
[2] Ibidem
[3] Ibidem
[4] BARBOSA Adérito Gomes, Cristãos com fé, Edições Paulinas, Prior Velho 2012, 87
[5] AQUIAR Manuel de (trad.), as linguagem da fé, Edições Paulistas, Apelação, Outubro 1976, p. 15
[6] BENTO XVI, Carta Apost. Porta Fidei, 11 de Outubro 2011, 1. AAS 103 (2011), pp. 723-734. Seguindo a edição portuguesa: BENTO XVI, Carta Apost. Porta da Fé, 6ª edição, Edições Paulinas, Junho 2012.
[7] BENTO XVI, Porta Fidei, 6
[8] João DUQUE, Homo Credens. Para uma Teologia da Fé, Universidade Católica Editora, Lisboa 2002. 116.
[9] MERTON Tomas, Vida e Santidade, Editorial Franciscana, Braga 2007, p. 115
[10]BENTO XVI, Porta Fidei, 6
[11]J. RATZINGER, Introdução ao Cristianismo, Herder, S. Paulo 1970, p. 43.
[12] AQUIAR Manuel de (trad.), op. cit., p. 25
[13] BENTO XVI, Porta Fidei, 1
[14] AQUIAR Manuel de (trad.), op. cit., p. 19
[15] IGREJA CATÓLICA, Catecismos da Igreja Católica, Gráfica de Coimbra 1993, no. 160
[16] BENTO XVI, Porta Fidei, 9
[17] BENTO XVI, Porta Fidei, 2
[18] BENTO XVI, Porta Fidei, 3
[19] MERTON Tomas, op. cit., p. 107
[20] BENTO XVI, Porta Fidei, 7
[21] IGREJA CATÓLICA, Catecismo da Igreja Católica, 163
[22] BENTO XVI, Porta Fidei, 15
[23] BENTO XVI, Porta Fidei, 8
[24] BENTO XVI, Porta fidei, 9
[25] IGREJA CATÓLICA, Catecismo da Igreja Católica, 166
[26] Georg STEINER, As Lições dos Mestres, Gradiva, Lisboa 2005, 45.
[27] J. RATZINGER, Introdução ao Cristianismo, 162.
[28] J. RATZINGER, Introdução ao Cristianismo, pp. 152-153.
[29]BENTO XVI, Porta Fidei, 10
[30] BENTO XVI, Porta Fidei, 10
[31] IGREJA CATÓLICA, Catecismo da Igreja Católica, 167
[32] BENTO XVI, Porta Fidei, 13
[33] AQUIAR Manuel de (trad.), op. cit., p. 48
[34] BENTO XVI, Porta Fidei, 9
[35]AQUIAR Manuel de (trad.), op. cit., pp. 52-52
[36]CLARA DE ASSIS, Santa, Terceira Carta de S. Clara à Inês de Praga, in «Escritos São Francisco e Santa Clara de Assis», Ed. Franciscana Braga – 2001, p. 280
[37] FRANCISCO DE ASSIS, São, Oração diante do Crucifixo de S. Damião, in «Escritos são Francisco e Santa Clara de Assis», Ed. Franciscana Braga – 2001, p. 29

 
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